quarta-feira, janeiro 12, 2011

A REVOLUÇÃO EM LÍNGUA MATERNA- Quem é A Negra Ama Jesus?

1-Esta entrevista não deixa de ser uma aventura!Pelo tanto que conheço e desconheço vocês. Explico: imagino muitas coisas a respeito do trabalho,chego a brincar com algumas representações que tomo emprestado, girando um faz de contas universal.Esta é a palavra:Universal.Também desconheço a trajetória, o projeto em si desta construção coletiva.O que é este projeto?
Marcus - O arco onírico inventa-nos. Temos 15 anos de casados e cinco filhos criados em nossa trajetória. A Negra Ama inventa-nos. Quem é esta mãe? O amor em forma de arte. Nossa harmonia, em meio aos espinhos que o destino nos crava, tem sido produzida enquanto nos colocamos no colo desta grande mãe. A dionisíaca ambição do ritual artístico procura louvar uma brasileira jornada, de alegria e encantamento.

2-Conheci o trabalho de vocês pelo Orkut. O que me chamou foi, mais do que tudo, “ A Negra...Assinalo esta questão lembrando que A negra é universal.Mãe e Jesus nem tanto.Quero dizer que mãe, geralmente, está determinada, colocada numa perspectiva de cuidados e de santidade.Jesus, da mesma forma.Porém...A Negra, somos todas nós,as mulheres, as possíveis mães, as putas, as moças, as esposas, as amantes,as...Enfim!É numa potência de construção.O que acham disto?

Sílvia - A Negra Ama Jesus é uma energia movida pela bênção de uma mãe benta, o que guarda a força, o embate entre o masculino e o feminino. A ideia é o sincrético, o espaço de todos, o encontro entre o profano e o divino. A ordem é o mito do novo amor criado a partir do feminino. O acolhimento, o porto, a casa. A oração em línguas diferentes, o espaço pra a crença sem o dogma imposto pelas religiões. A construção de novos olhares sobre as relações. Escrevo em um poema: “Protege o meu andar/Ó santa virgem./Envolve com seu manto/Todas as putas mães/Resignadas ao calvário./Pinga sobre o meu olho/O óleo perfumado de lótus,/Ó amantíssima mãe das cadelas.” A negra construída no imaginário feminino é a raiz do Brasil e seus encantos.

3-“Revolução em língua brasileira”... É isso o que diz um de seus poemas. É surpreendente pois de fato a revolução só pode vir nesta língua, nesta forma de falar que vem de berço, forma de agrupar as palavras e as verdades, numa transmissão de amor.Esta relação com a língua lembra o que antecede e funda o que ainda vem.Como A Negra trabalha com este tempo, com  as tradições, com as invenções?
Marcus - O poema fala: “Enamorar-se por uma dionisíaca intenção./ Amar a cor negra./Rezar pela moça indígena./ Lágrima por uma revolução em língua brasileira./Lógica tropical ritualizando a verdade em cruz e violência”. A forma do português falado no Brasil é doce, como diz Gilberto Freyre, por obra da ama negra de leite. O seio da ama de leite adoça a boca de menino. Freyre relata que há uma espécie de amolecimento no falar brasileiro da língua portuguesa perpetrado pela negra ama: “A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo”. A civilização brasileira já está ocupando o espaço do novo modo de produzir a transformação. A posse recente de uma mulher presidente depois de o país ter sido governado por um retirante nordestino, ex-operário, já revela uma forma pacífica de revolução.

4-Por muitas razões percebo que vocês dão espaço privilegiado ao que podemos chamar de imaginário feminino. Por exemplo: “boneca de pano é leitura em língua ovariana”. Existe uma espécie de pontuação, de articulação com as peculiaridades de formas do existir. Independente de ser homem ou mulher, o feminino e o masculino falando, compondo,dizendo-se nas suas diferenças.Ovários,Dona Deusa,Jesus,Diabo Velho...todos abrindo espaço para a vida.Poderiam falar um pouco disto?
Sílvia - Quando ouvi o Marcus falando em lírica ovariana fiquei fascinada. A linguagem feminina em composição masculina. Assim partimos para uma aventura artística ao mesmo tempo em que reconstruíamos nosso casamento. Fizemos isto, costuramos, remendamos e bordamos a nossa relação. Com todo esse universo em nossa casa, ancorada por Dona Deusa (que vive em mim), começamos a pensar em um projeto criado a partir de nossas percepções mais profundas. Algo assim, místico e grandioso.

5-Mas...Coralina?(ehehehe).O que é Coralina encarnada a mãe Universal, para vocês?
Marcus -  A poesia de Cora Coralina acende o rito de adorar a mãe. Nossa poesia, junto com as imagens que produzimos, pretende dar continuidade a este rito. Um poema de Cora acorda a memória arquetípica da mãe, que enfeita de ouro o lixo: “Beco da minha terra.../Amo tua paisagem triste, ausente e suja./Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa./Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio./E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia,/E semeia polmes dourados no teu lixo pobre,/Calçando de ouro a sandália velha,/Jogada no teu monturo.” A arte é nossa réstia de sol.

6-Particularmente sempre pensei que costurar e escrever fossem quase a mesma coisa: num tecido sem fim recorta-se sonhos, costura-se para que possam ser usados.Brinco que as palavras são as melhores roupas e que as cores...Ah! As cores escolhemos, inventamos. Quando percebi que vocês trabalham com tecidos, de fato, encantei-me. Qual a diferença entre roupa e palavra?

Sílvia - A roupa torna-se a palavra vestida, recebida de uma conspiração entre poesia, indivíduo (que veste a roupa) e arquétipos criados no espaço d’A Negra. A sociabilidade da palavra na ótica d’A Negra enquanto projeto de arte e proposta estética. As cores do Brasil. A criação do imaginário através dos arquétipos.

7-Por vezes acho o ritmo da escrita de A Negra ama Jesus parecido com o dos que caminha em grande jornada. É rápido e lento, é pausado e forte... para chegar lá.O que é a escrita enquanto ritmo?Onde desejam chegar?
Marcus - A Negra Ama Jesus quer imitar o tempo mítico do terno gozo que o estelar medo infunde no ser humano, ou seja, ressuscitar na poesia. A pátria origina-se deste medo da sua própria morte.

8-A arte e a ...cidade ( ehehehehe). Nasceu da cidade a arte ou da arte a cidade? Pois é, pois é...Como A Negra ama Jesus pensa esta relação ?

Marcus - A cidade artisticamente se faz. A dor erige um amoroso e lento processo de civilização. A arte alivia esta dor.


9-Causar indignação e esperança, causar uma revolução em língua brasileira, causar movimentos como  “Abrir a Ferro e Sal”...”Com olhares de Dona Deusa”...Sei que Silvia Goulart e Marcus Minuzzi são os idealizadores deste projeto.O que causou este envolvimento, este desejo ?O que os move neste sentido?
Sílvia - A nossa união. O casamento. Depois de uma crise muito grande no casamento, buscamos a reconstrução. Um processo difícil e demorado. Nos reencontramos querendo criar este vínculo divino através da arte. Portanto, a cura. Se você observar, as poesias estão repletas deste tema. “Bordamos, espetamos, despertamos a dor, para depois a curar.” É o trecho de um poema meu. “Cortar a ferro e a sal” é quase um feitiço, uma força feminina em busca do seu amor. Além de tudo, o amor pelo Brasil. Todos os elementos e símbolos brasileiros estão presentes. A “revolução em língua brasileira” é a proposta do novo espaço forjado pela ótica feminina.


10-O bem  e o mal...é o que aparece em muitas composições.Bordar, espetar, curar. A relação da cura com a doença; o pathos ( paixão) do  humano que traz dor mas também toda a delícia de criar e amar.O que seria “ cura”, neste sentido?
Sílvia - Acho que acabei respondendo acima. Em toda a relação homem/mulher, abrem-se feridas, isto é inevitável. As mágoas, as rusgas, enfim, tudo que nos coloca adversários. É uma guerra. Por isso, transformamos esse guerrear num guerrear divino. Guerreamos brincando com a arte. Escrevendo, pintando. Fazendo de nossa casa um templo. Resolvemos nossas dores e diferenças neste espaço. Se você assistir a um de nossos vídeos vai aparecer no final: produzido no espaço mitológico do guerrear divino entre Dona Deusa (Sílvia) e o Boi Arteiro (Marcus). Isto é a cura – a arte.
11-Pelo tanto que conheço (que ainda é pouco) e desejo conhecer o trabalho de vocês, diria que é de fundação, de alicerce, de transmissão de algo. Neste sentido, passar adiante o faltante, o que convoca a cirandar,costurar,escrever,pintar.O que é este espaço  enquanto lugar físico?
12-E enquanto lugar simbólico, nesta terra, neste tempo?

Marcus - A ciranda ordena a lembrança da forma circular. O ouro que descobrimos artisticamente harmoniza o anseio por amor infinito como a violência e a pobreza da vida cotidiana. Girar é tornar a pobreza um espaço olímpico, ou seja, divino. A representação do ouro artístico brasileiro está na cultura popular, especialmente no carnaval. O mito brasileiro tira da espacialidade tropical uma alegria que torna seu tempo molemente aquoso.

13 - Vocês são gaúchos e do mundo. Como chegaram neste espaço e tempo?

Marcus - Sair do Rio grande do Sul nos trouxe para o coração do Brasil. A aventura da exploração de um sertão moderno nos torna a cada dia mais brasileiros.

14-Gostariam de dizer mais alguma coisa?
Sílvia - Gostaria de dizer da alegria imensa de poder falar d’A Negra. Perguntas tão precisas, que refletem o quanto a entrevistadora captou bem a essência do projeto. Este projeto é de todos. Começa aqui em nossa casa. Mas esperamos criar pernas, braços, vozes, para que possamos reinventar relações. Estamos gestando algo que muitas vezes causa estranhamento, dúvidas, as pessoas não entendem. O nome é inusitado, mas chama para o Brasil. Para a mãe de leite, a negra ama. Para o carma crístico, a fé em  Jesus, a religiosidade. Já rezamos o rosário incessantemente para prosseguirmos nossa vida a dois, já o fizemos, sim. Estamos andando e crescendo, temos certeza de que é uma missão.



Agora, terminando por aqui, lembrei de uma inscrição de sonho muito particular.Sempre achei que eu era filha de Pequena, minha mãezinha que tinha a pele escura.Ainda lembro do susto quando me disseram que não.Oras! As pessoas dizem tantas coisas!Quem sabe direito sobre filiação! Pequena...mãezinha para sempre,do coração!Pois é...A Negra Ama Jesus , mãe universal ,possivelmente adota a todos que tem palavra de vestir.Além de agradecer a entrevista prometo à mim conhecê-los, aí no Cerrado, para encontrar comigo mesma, meu Diabo Velho e anoitecer com Coralina a desenhar a janela.Fico feliz e grata pelo nosso encontro , por compartilharem conosco esta obra magnífica de humanidade e amor.
Beijo com todas as letras
Adriana Bandeira

Um comentário:

  1. A poesia de teu blog aliementa a ritualização da força da escrita sensível do feminino. A Negra agradece por poder figurar neste espaço.

    Abraços,
    Sílvia e Marcus

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