segunda-feira, maio 30, 2011

Para o poeta assumido

Todo risco é palavra desenhada diferente, é resto de sombra em luz crescente que se transforma em sonho ou dor.Parte a carne e fere os olhos enquanto aquece o fogo, para outra nova canção.Risco é vôo sem asas que se desprende de casa e não volta nunca mais.

ASSUMIDO

PARA TIM MAIA


o poeta não foi
ao evento para o qual você
o convidou, o puto

não quis te assistir
quando você mais precisava
de público, ele

sumiu. dizem que
não vem quando está
escrevendo (ainda mais

se proseia ou ensaia) e
o texto começou a andar
ou desandar (dá

no mesmo), ou se
não está escrevendo
nada, grávido de

poesia, ou seja, em
crise, desgostoso com
o mundo da palavra.

se o poeta compareceu,
anote bem, foi porque
calhou, não que goste

especialmente de tudo
o que hay, ainda que se
esforce para rever

amigos e desconhecidos
que gosta de ler ou
assistir: marca na

agenda e sente dor
quando cumpre a regra
de não ir (ou porque

trabalha para comer
e dar de comer -
e sabe bem o que é

não ter nem isso -
ou porque além de todas
as dores que guarda

ainda tem a das costas
de tanto digitar,
ou a de cabeça

à cabral, que o
desatam sem carinho,
catapultando

a dificuldade
para dormir regularmente
dentro da vida

irregular que leva,
mais as complicações
todas da sempiterna

entropia diária).
o poeta, como se vê,
é um mau sujeito,

um tim maia,
que se rejunta
pelo menos para não

deixar de ir
ao que protagoniza,
se bem que

nem isso pode
garantir 100%,
pois mesmo garantindo

cai em fossas
feito esgoto
sem explicação.

visto que lê muitos
textos bem organizados
e interessantes,

não tem muita paciência
com abobrinhas
mal digeridas,

nem com as dos outros,
nem com as suas,
gosta de ler,

não de repastos que
fazem mal como um
filme ruim

(arte ruim entristece,
conduz ao suicídio,
mata mais que guerra).

o poeta quando vem
é alegre e quer
estar de bem com você,

gozar a inteligência
da sua fala,
da sua família

de amigos, mas
não esqueça nunca,
ninguém esqueça,

o poeta é um sumido
assumido.


SIDNEI SCHNEIDER-2011

sexta-feira, maio 27, 2011

Poemas de rua...a cidade em mim

 Sons daqui

Te vejo nascente na rua esculpida, pele semente, palavra antiga.Entrego teu rio na mão inquieta, sem brilho,sem som,apenas réstia.Ainda o silêncio da mulher estrada, quando teceu o caminho, mais nada.

quinta-feira, maio 26, 2011

Bordado

A aranha só
sabe bordar
todas as noites
a canção que há.
Num traço que,
na madrugada fria,
se desfaz.
Ela é
sempre
o que
ainda não
está.

Poemas de Rua...a cidade do outro,por Carmen Presotto

Sarandi

chove em vidros
vidraguo minha janela
lavando um porto
cicatrizo
e fendo florcidade

Bailarino letras
sangro veias de mãos em mão

Chove
olhos escoam pessoas
que passam

Sarandi
versos indíginas da flor primeira
mundo
saudade da última perda

Voz de vidros
que molham
carmens de Bizet a mim

da ópera
gotejo vermelha
uma música
que me planta jardim

Sarandi
tua água perfumada
me orvalha néctar
teu sol me desdobra foz
arco-íris
e para ti amore mio
me chovo em idades…

Poema de Carmen Silvia Presotto

segunda-feira, maio 23, 2011

Olhar na web

Quero te ver
em presença
não tela,
esmagadora
essência.
Já basta a minha
mirada,
estanque e
passageira.
Quero sentir
em verso,
denso
e eco,
tua voz
em mim.
Querer é
mais do que apenas
tv.

sábado, maio 21, 2011

Para Wagner dos Ais-blog Poemas da Minha Alma

E finda tanto como estouro no cais, a boiada do campo, a voz do mar.É o estampido da mutilação que mais em sombra é só verdade.Distância, perenidade... da palavra que rasgou a razão.
beijo grande.
adriana bandeira

sexta-feira, maio 20, 2011

PARA LAU SIQUEIRA..."PQ LANCEI MEU LIVRO NUM MANICÔMIO"(BLOG PELE SEM PELE)

Sem devolver nenhum dos pedaços, como espelho que se desloca em traço...no corpo,na palavra,na terra.Sempre parte da lembrança, escrita sincera.
adriana bandeira

Não sei se por ironia ou por desacato é sempre da palavra a transgressão.Quem fica, só tem esta marca e dela não abdica...senão para quê viver?Por algum motivo simples, conheço algo disto,da casa disto, da rua disto...e sei da necessidade que resiste às vaidades, às aparências, como quarto seguro e pequeno em que nos vemos sempre.
Lembro de mim, há algum tempo, com um resto de poesia na bolsa...quando o pai declamou para mim.Um resto pq ele não lembrava mais.
Uns dizem não com a voz...outros não falam mais.
Pois bem,para ti, daquele bilhete que o pai me deu:..." e à um anjo feito tu quando se brinda, têm-se a missão cumprida e a festa finda: quebra-se a taça,não se bebe mais"...E a taça é quebrada a cada vez...pelo que se quer para sempre.
Beijo grande,Lau.

quarta-feira, maio 18, 2011

POEMAS DE RUA...A CIDADE EM MIM VII

 Anos de chumbo

Quando o vazio
entrou na casa
esquecidas primeiras
foram as falas,
o nome das coisas,
dos sons.
Branco de tinta,
uniforme cinza
sangue marrom.

POEMAS DE RUA...A CIDADE DOS OUTROS I

                                                 ALEGRETE
A cidade que herdei
tem rebanhos de pedra
semoventes de sombras
e um cavalo de troia.
Negrinhos, salamandras e pastoreios
perseguidos por um rio
atiçados de vertentes
na misteriosa profecia
de suas águas.
Ilhargas, hortos e casarios
quinchados de sois poentes.
Cartuns ,Cartago
musicas que jamais acabam
enfeitiçando o mágico festim
dos meus brinquedos.
Igrejas de torres afiadas
num ceu azulado de sonho
vigiado à distância
por uma minúscula
lua de marfim.
Batizei de Alegrete
os reinos silenciosos
da cidade que inventei...
                                                                       Élvio Vargas
Pg 4 do  " Livro: Cidades Gaúchas
            Organizador: Luiz Coronel.







CÓDIGO DE (IM)POSTURAS PARA UMA CIDADE IMAGINÁRIA  - I

crepúsculos
sepulcros só
aos olhos dos suicidas
condôminos do ocaso
pássaros provisórios
dos terraços
lusco-fusca a cidade
nos velórios
do concreto
cansaço

          Jorge Rein

POEMAS D ERUA...A CIDADE EM MIM VI

  Asa delta

Todo vôo é rasante.Corta o espaço e a cidade: agora e antes.

terça-feira, maio 17, 2011

Para conferir...Palestra de Elvio Vargas em Alegrete: falando sobre Mário Quintana.

O poeta e escritor Elvio Vargas estará falando sobre Mário Quintana, numa palestra que se realiza hoje, no campus Universitário de Alegrete, na Universidade da Campanha.
" A memória Existencial e Poética de Quintana" acontece às 19:30 no Salão de Atos General Alcy Cheuiche,no Campus, em Alegrete.
Esperamos Élvio, em indecentes palavras, para quem sabe nos brindar com algum bom momento deste encontro.

domingo, maio 15, 2011

POEMAS DE RUA...A CIDADE EM MIM V

 Crisóis

Quando as luzes acesas derramam estrelas pela procissão, escorrem as cores numa madrugada fria que se enche em festa de cristão.São estranhas vozes seguindo deus, numa domesticação: Ibiá não se canta, só assunto de reza, que o morro dos outros não se dá mais nos crisóis.O Morro de dentro é assassinato na rua, é Caigangue chamado de ladrão.São João do Montenegro, nunca pediu perdão.

POEMAS DE RUA...A CIDADE EM MIM IV

 A casa morta


E depois de atingida, ainda viva, aguardava inerte.Braços e pernas dilacerados, com o olhar no trilho inexistente, esperança que traz o tempo de volta.Jazia imóvel e relutante de escapar dali, carregando só as ruínas, sem a própria alma.Por algum tempo respirou, contrariando as leis das demolições.Braços, pernas e sexo, violados pela colonização que se repete nas ruas e praças, matando o que restou  de palavra-paixão.
Com a mão já morta acenava incrédula: lá vinha ele com o chapéu para trás.Sentou-se, com o cigarro que carregava na orelha, de onde a fumaça escuta o apito do trem.Eu que nem fumo, nem canto, fumei e cantei uma música que nem conhecia, só para pedir desculpas por ter chegado tão tarde!
"Volgmut"enrolou fumo e tecido, panelas e palavras num mesmo grande saco: viagem.Olhou-me em dizeres de perda, embarcou no trem que nem existe mais.Antes, a casa dando-lhe a mão, morreu com sua alma, em paz.
Quando a nova construção surgiu tão rápida, invadindo a praça e a delícia, nunca mais pude morrer.Virei fantasma do desejo de ser.

sábado, maio 14, 2011

Poemas de Rua...a cidade em mim III

 Caminho

É vertente de terra,o caminho aberto pelas passagens.Altas,espertas metades, entalhadas num mar de capim.Ainda verde, em chamas de ar, colhendo toda marcela que há...para o remédio dos dias da mãe.Mas era o sol ardente que fazia riscado na pele , tecendo o suor em oração.De longe ele veio, no mesmo caminho,roçando os olhos na branca minha visão.Não recuei do destino: as marcelas, o caminho de chão e os móveis de núpcias.Por certo, dizia a mãe, que não voltasse no passo...para colher chá de mulher.Só não sei o que fazer com estas marcelas que reúno há anos, como remédio por engano, para reencontrá-lo lá.

Poesia sem Pele-Lau Siqueira

Poesia Sem Pele será lançado dia 18 de maio, em João Pessoa

A editora gaúcha Casa Verde estará apresentando ao público pessoense, no próximo dia 18 de maio, às 20h, no pátio do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, o quinto livro de poemas do poeta gaúcho radicado na Paraíba, Lau Siqueira. Poesia Sem Pele faz parte da coleção Cidade Poema (http://www.cidadepoema.com/), projeto coordenado pela escritora Laís Chaffe e que vem espalhando poemas pela cidade de Porto Alegre em out-doors, bus-doors, bolachas de chopp, adesivos, imã de geladeira e outros suportes.
O evento faz parte de uma ampla programação da Semana de Luta Antimanicomial que além dos debates, palestras e manifestações públicas,  contará com oficinas e shows, envolvendo nomes importantes do cenário artístico local e nacional. Entre eles, Babilak Bah e Tom Zé.
Para Lau Siqueira o lançamento realizado dentro do Complexo Juliano Moreira ocorrerá dentro de um contexto muito especial. “Logicamente que não podemos atribuir à poesia um poder de transformação de realidades tão complexas como a dos sistemas pisiquiátricos. No entanto enquanto escritor e militante entendo que precisamos agregar forças, com nossa arte, com nossas energias, para caminharmos para uma sociedade onde o fator humano seja preponderante. Como disse Antônio Cândido, ‘a literatura deveria ser considerada um dos direitos humanos’ ”, afirma o autor de Poesia Sem Pele.
Para a prefaciadora da obra, Susannah Busato, professora de Poesia Brasileira na Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de São José do Rio Preto, “As imagens da natureza na poesia de Lau Siqueira assumem uma dimensão cósmica, como um signo que condensa no átomo do poema um elétron pulsante, construíndo pela pulsão entre olhar e objeto uma relação magnética  e anterior ao tempo. Quero com isso afirmar que sua poesia penetra os objetos extraiondo deles a dimensão de um mundo ainda não visto.”
Além do lançamento, na noite do dia 18, no pátio da Juliano Moreira estará acontecendo um sarau poético e uma apresentação do Círculo dos Tambores, criado e coordenado pelo professor do departamento de música da UFPB, o percussionista, Chiquinho Mino. A apresentação da obra será feita pelo poeta paraibano Jairo Cezar, ex-diretor do Memorial Augusto dos Anjos e autor de Escritos no Ônibus. Antes de João Pessoa, o livro foi lançado no dia 5 de maio, na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, na programação no FestiPoa Literária e no dia 10 de maio, no Brooklyn Café, em Curitiba, numa promoção do jornal Memai, de cultura japonesa.
.....................
O quê? Lançamento do livro Poesia Sem Pele (72páginas), de Lau Siqueira
Quando? No próximo dia 18 de maio, às 20 horas
Onde? No Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, em João Pessoa
Preço de capa: R$ 10,00

terça-feira, maio 10, 2011

POEMAS DE RUA...a cidade em mim II

 Margem do seio, rua do rio

Meus primeiros
seios
na espera do rio
que sempre chega
cedo
Muitas vezes
em maio
outras receio...
O saber cresce
em idades
como água
nas paragens
que desenha
outra e outra...
margem

POEMAS DE RUA...a cidade em mim

Inicio uma série de textos, feitos na hora, que se apresentam em indecentes palavras.Eles falam da cidade, da rua, das coisas que me habitam, numa espécie de reconhecimento deste lugar onde moro.Talvez venham da necessidade de escrever algo sobre a existência das palavras que, antes de mim falaram, nas casas que foram demolidas, no cais entreaberto, no estaleiro adormecido que não pára de não arrumar barcos.
Pois bem...inicio esta censura no que passeia livre nas imagens de mim; censura suposta e amiga que faz nascer palavra num sem fim; dique do rio que cria o barulho das águas e das estações.
Convido as pessoas a utilizarem este espaço como denúncia de fala, como poesia armada, como toda pronúncia não deixa de ser: arma de humanidade.

Na esquina
tua voz ainda fala
de Getúlio, tão Vargas!
...que passeia como
se fosse abril.
Recolhidas as mulheres
sorriem: é festa do pai
que reconhece os homens,
numa servidão sem mês.

domingo, maio 08, 2011

EnRedados em Indecentes Palavras: homenagem à Cora Coralina em Vidráguas

https://mail.google.com/mail/?ui=2&ik=824c6d5fa2&view=att&th=12fd1c8bbb272727&attid=0.1&disp=inline&realattid=f_gngkh3nr0&zw
www.vidráguas.com.br

Eu de ti

Nunca fui do lado de lá, no cio das águas.Nunca atravessei o verbo rio de mim, de onde calas.

Último olhar

Ensaiei uma frase, a que eu diria se fosse sábado.Outra no domingo...e os dias da semana passaram anunciados de fim.Por resto, não repeti nada quando me despedi do único olhar que findava.Só parti.

sexta-feira, maio 06, 2011

Melhor tempo

Quando a melhor poesia desenha a rua,casa,esquina...é hora de assistir as luzes que se acendem como páginas, todos os dias.

Flerte

Teu olhar
de homem
por um
instante
pousou-me "in" certo.
Minha pupila
dilatada
recebeu-te
fértil.

terça-feira, maio 03, 2011

A pele da palavra é o barco que segue no tempo...falando das portos com Leonardo B.



1-Leonardo...é comum lermos um poema, um texto, uma frase e, de certa forma
imaginarmos o autor como aquele que sempre soube o que ia dizer. Neste aspecto é
imaginário indigesto consumirmos a palavra como já pronta, plantada no seu autor,
desde antes. Poderia nos falar um pouco de teu processo dentro disto? Porque escolheste
escrever?

Seria dramático se assim fosse, Adriana, a “palavra pré-confeccionada”, o objecto de
arte já impresso, pré-fabricado em cada um de nós, como uma fatalidade, um destino
ao qual não nos podemos furtar, pelo menos àqueles que ainda gostam de encontrar
o mesmo rosto todos os dias ao espelho, pela manhã, com mais ruga, menos ruga.
Prefiro pensar, refazer diariamente a minha relação com a palavra, e pretende-la
como uma união de facto, como um “casamento secreto”, em que cada um sabe das
suas obrigações e deveres, dentro de portas, mas entre si e diante do mundo, entrega-
se incondicionalmente, sem fronteiras ou regras bem delimitadas, e naturalmente,
sem julgamentos desnecessários, nem ambições frustradas por antecipação… eu e a
palavra, damo-nos bem, mantemos a relação saudável e sem máscaras, sem contrato
assinado no cartório, sem a necessidade de manter a “fachada”, o cadastro limpo e
imaculado, ainda que de quando em vez haja lugar para uns pequenos delitos, umas
pequenas traições, nada de mais… Por outro lado, seria indigesto, e pego na tua
expressão, se a palavra já estivesse “cá dentro”, devassando o meu espaço, como dona
e senhora da minha vontade e vice-versa; a palavra tem mais que fazer, para obedecer
a um estereótipo, que ainda que seja muito confortável, não funciona, é redutor; em
determinados momentos, abrem-se excepções na nossa relação, mas sempre com o
cuidado dos amantes… deixo-a ir e voltar, quando deseja e bem entende, e penso que
me exige, mais ou menos o mesmo, por muito que nos custem algumas separações
forçadas…

Porque escolheste escrever?


                                 Leonardo ainda menino,no primário

Ora aí está “a pergunta”: Adriana, terão as coisas mais simples uma resposta
convincente, imaculadamente decente? Porque é que as nossas paixões são
comparáveis, por baixo, aos tornados que arrasam tudo à passagem, montanhas e
monumentos milenares, incluídos? Porquê, ao idiota que se aventura no mar para ir
descobrir um mundo qualquer, que nem nos mapas existe, disposto aos caprichos das
tempestades, e nem sabendo muito bem o que vai fazer às Índias, às Américas ou ao
Japão? Porquê ao homem que insiste em pisar o solo lunar, sem que faça a menor ideia
que aqui no quintal ainda existem milhões de perguntas por responder e questionar,
uma família que o reclama para o jantar que arrefece, mas não... o tipo teima ir mais
além, na escuridão da sua ignorância, sem se aperceber que nem há uma questão a
responder… nada de nada. Não faço a menor ideia porque escrevo, nem sei bem onde
arranjei este “contrato” com a escrita. Sei que foi há muito tempo, já tivemos bons e
maus momentos, e nem sei se foi a escrita que me escolheu ou contrário… nem faz
diferença. O mesmo já me aconteceu com as tintas, com a pintura, um caso furtivo,
diria, em que “as coisas não funcionaram” e tivemos a coragem de concordar
mutuamente que cada um ia à sua vida, sem causar mais danos ao mundo… o que não
quer dizer que não nos encontremos de novo, eu e a pintura e voltemos a ter um caso,
não… acredito que está sempre tudo em aberto e com os anos fui aprendendo a

entender que uma das expressões mais abjectas que utilizamos todos os dias é
um “nunca mais”. Da mesma forma, que a minha relação com a escrita é desapegada,
e como tal, senão mais frutífera, pelo menos mais sincera, com a pintura acontece o
mesmo… talvez um dia nos encontremos por aí de novo, e nunca se sabe… Enquanto
houver incondicionalidade e sinceridade à “flor da pele”, tudo fica em aberto e vai
ficar, até porque é aí que tudo começa e acaba, na sinceridade ou na falta dela.

2-Não é raro que tua poesia inspire uma denúncia sobre a morte. Quando chego a
isso costumo apontar a verdade pontuada a cada parada, no ritmo da escrita mesmo;
costumo dizer que o poema nasceu em carne viva. Concordas comigo? O que achas
desta analogia?

Não é fácil concordar ou discordar, porque é algo que nos escapa, enquanto pessoas
simples que estão a dar forma a algo, na constante procura do resíduo, do que sobeja
da vida, para o enformar e dar-lhe vida, animar. E aí há uma tentação enorme de nos
comparamos a “criadores”, mas nada disso, essa perspectiva é muito presunçosa,
ainda que haja quem a tome em forma de remédio, às colheradas, todos os dias, mas
isso não é o que mais me importa… isso é água-benta que cada um toma a que quer.
Na minha perspectiva, o escritor, o artista enquanto ser que vai embirrando com o
mundo, inconformado, esgravata, quando muito, um pormenor, um acidente feliz no seu
dia, uma palavra que alguém se esqueceu de semear e vai por aí, sem rumo, mas com
a teimosia indispensável de quem se pensa poder “alterar” o inalterável… e por vezes
os sintomas muito semelhantes ao “acto da vida”, ao acto dum parto: uma luta intensa
num lapso de tempo, um resgate para a vida do que se sabe ser um combate desigual,
medem-se as forças entre o que temos por vida e morte, a ansiedade extenuante do
combate e no final… aí estamos: prostrados, exangues, como se se tratasse do nosso
último momento, a última parte dum ritual, o fim, e afinal não, ainda “estamos vivos”,
o poema está são e salvo, pela nossa parte. O que lhe acontecerá depois, já nos
ultrapassa…

Tenho muitas vezes presente, e de forma bastante vivida, o dia em que assisti ao parto
do meu primeiro filho e que inevitavelmente revolveu-me, mexeu na minha estrutura
interior, na forma como se condensa a minha relação com o mundo… tudo naquele,
nesse momento é tão frágil, tão breve, tão desigual e ao mesmo tempo tão claro, tão
evidente, que só nos pode apequenar, a nós homens que “assistimos” a essa luta com
a convicção que estamos dentro e com a mesma tenacidade, com a mesma audácia
que a mulher que “entrega à vida o que lhe pertence”… mas não; estamos, ainda
que de corpo e alma, e o pouco que nos compete é estar ali, a observar, a ajudar nas
coisas práticas do parto… mas, da sala, enquanto homem num mundo estranho que é a
maternidade, trouxe, para além das muitas emoções que não cabem na nossa conversa,
nem as saberia materializar, o que soube reter, o que me foi permitido reter da grande
metáfora da vida, do nascimento duma criança, filho meu, e que desfaço e refaço
muitas vezes, enquanto escrevo, enquanto me entrego de novo ao mundo, enquanto ser
frágil que fui e que sou, em constante dor, que não é nem de parto, nem de chegada…
é outra coisa qualquer, uma outra forma de analogia e semelhança de vida, uma
constante busca duma outra dimensão da vida; aí concordo, salvas as distâncias, que
sinto o poema carne viva, ou melhor, um pequeno sopro que não sabe muito bem da sua
dimensão, mas que existe e está lá, a ganhar nos lapsos do tempo, a força, a coragem, o
despojo que nos falta no quotidiano, banal e comum. E é consolador, muito consolador,
o sentimento de que algo que em nós morre, e que vai morrer necessariamente, poderá

ressuscitar “no outro”, ganhar uma nova forma, uma outra dimensão, uma essência
independente, algo que nos escapa, mas consola, apesar de tudo. Talvez que daí, o meu
quase desapego ao poema, para me entregar incondicionalmente à palavra, e neste
particular, à poesia… mas daí a “ser poeta”, vai uma grande distância.

3-A barca dos amantes...ali tem um título curioso que preciso saber: o que é “ A criança
inacabada”?

Nada de enigmático, nada de mais… para o caso de ser relevante, Adriana, comecei
a rascunhar aquilo que vulgarmente chamamos poemas, bastante cedo… talvez com
treze, catorze anos, coisas pequenas, que hoje poderia facilmente negar, mas na altura
deram um jeito terrível para manter uma “certa aura”, que em plena juventude, o
maior e mais imediato proveito que trazem são umas quantas conquistas femininas e
um “causar impressão” nos professores de Português e consequentemente, uma ou
outra nota um pouco melhorada, e até aí, tudo bem… e o depois? O depois é o pior:
quando chega o inevitável sentimento de que somos o novo Pessoa, ou algo que o
valha, é que vem o Inferno.

Escrevi regularmente até aos meus vinte e cinco anos, mais coisa, menos coisa, até
que, e mais uma vez de mútuo acordo, eu e a poesia separamo-nos durante um período
suficiente, ainda que longo, mas proveitoso para ambos. A esse período anterior, esse
meu primeiro contacto com a poesia, em que assinei como Ricardo S., fui guardando
por anos e anos, aos tombos, nas gavetas improvisadas, o que sobrava do papel que
não foi rasgado ou esquecido nas mudanças de casa. Do que consegui reunir desse
período, nasceu o blog A Última Estação, que está provisoriamente encerrado, por
diversos motivos: ainda salvei cerca de trezentos textos, que ainda espero compilar
decentemente, retirar do formato digital o melhor possível, e reunir uns quantos de
forma a encerrar em definitivo esse capítulo: a haver livro, chamar-se-á “A Criança
Inacabada”, o que já esteve muito perto da edição, mas não considerei oportuna, e nos
moldes que me foi sugerida, não seria proveitosa para ninguém… então, lá estão, ainda
por se verterem em tinta no papel, quando assim o entender por melhor momento.
Pelo menos desapareceram as pastas arquivadoras e os originais, que fiz questão de
destruir à medida que ia colocando cada texto no Última Estação… menos bagagem
por transportar!

4-Ao ler teus poemas algo rasura, marca que eles apenas são um resto. Explico: é
como se apenas uma parte ali estivesse. Assim também parecem ser tuas frases quando
comentas no Indecentes Palavras. Seria um poema, sempre, inacabado?

Pode parecer uma analogia ridícula, mas vejo-me e não raramente, como uma espécie
de médico legista, de palavras e sentimentos, de resíduos emocionais, de detritos pouco
interessantes, e não raras vezes levo-os para dentro da escrita, autopsio-os com a
minúcia possível, mas perco-me muitas vezes no detalhe insólito e desinteressante,
com o que está por dentro… não tenho urgência do diagnóstico e isso faz de mim um
péssimo sobrevivente, no mundo. Ainda assim, tenho muitas vezes presente os versos de
Poe, “all that we see or seem, is but a dream within a dream”, que para o bem ou para
o mal, trago-os para a minha percepção que tenho da palavra, da palavra que sobra da
palavra e se refaz numa outra… numa incompletude, numa imperfeição da percepção
da palavra, que pode ser constantemente alterada, de todas as vezes que ainda não a
sentimos esgotada, aprisionada nos dicionários, e assim “ela” o permita.

O poema, como território de exploração emocional, existe enquanto persistir essa
noção de efémero, de frágil, de incompleto dentro de si… e raramente, senão nunca,
como objecto final, obra finalizada, matéria de facto para ser estudada: a ser assim,
vejo-o como mau sinal… já nos fizeram o funeral há muito tempo e as medalhinhas
comemorativas já foram distribuídas com profusão. É essa a sina da poesia, que
haveremos de fazer?... (risos)



                                          


5-O que são, como lugares subjetivos, os espaços de escrita e de leitura? O sujeito que
lê seria o mesmo que escreve?

Frequentemente coincidem, assim creio, Adriana, ainda que haja um fosso a separar
ambos, um fosso enorme que podemos apelidar de “exposição”, o suporte papel, por
norma, a ponte inevitável entre um e outro, entre ambas as margens.

A dificuldade de comunicar, de esvaziar esse espaço subjectivo, tem sido atenuada com
a descoberta, com “democratização” da escrita e da leitura nos meios digitais, o que
naturalmente é visto como um perigo, um alarmante caos nos pretensos meios eruditos,
mas isso não é questão onde me detenha por muito tempo, até porque as regras do
jogo mudaram e vão continuar a mudar a um ritmo vertiginoso… preocupa-me mais
a questão do “até quando?”. E o mais é óbvio, “desse lugar”: onde se ganha espaço
de relação entre escritor/leitor, no mais das vezes perde-se o poder, o que de mágico
tem própria escrita, o do seu amadurecimento enquanto relação no espaço e no tempo
do indivíduo, o poder de crescimento no horizonte do individuo… e nos meios digitais,
tudo é tão breve e fugaz: “coleccionam-se” amigos, pretensos admiradores, luta-
se arduamente pelo número de comentários em cada post, com ligeireza “aceitamos
compromissos”, não se criam “tempos” para ponderar o essencial nessa relação,
tão frágil que são os espaços partilhados da escrita, entre quem lê e quem escreve…
mas no fundo da questão, é tudo uma questão de reciclagem: o mesmo passa-se no
meio quotidiano da edição, e da “promoção” da imagem do escritor e mais raramente
do livro, e no mais das vezes de modo bem mais deprimente… a diferença está na
remuneração ou na falta dela, na exposição mediática que tanto se odeia da mesma
forma que se procura com uma devoção quase irracional… e ele há tantas formas de se
querer fazer passar por vitima dos paparazzi… (risos)

6-Li uma entrevista que deste há algum tempo atrás. Ali descreves o momento
em que passaste dias escrevendo...e que acabaste por herdar uma grande dor nas
costas(eheheehheheh). Pois bem...ser tomado pela letra, ser invadido pelo desejo de
marcar, de registrar...escrever. Como descreves isso?

O Fernando Pessoa chamaria êxtase místico, eu prefiro chamar “necessidade a quanto
obrigas.”(risos)

O texto que então escrevi, ainda está intacto, sem revisão, com setecentas páginas por
acontecerem livro, talvez um dia, ou talvez não… é, penso eu, um rascunho de romance
histórico que “tinha que acontecer”, naquele momento, naquele período. A grande
herança que trouxe, de então, dos quatros meses de reclusão voluntária, essa grande
dor de costas, é algo que ainda a esta distância dói, não nas costas, na região lombar
propriamente dita, mas no acto de então “ter tido que me esconder” para escrever, a
coberto de alguns cúmplices, o que é tão abjecto e quase surreal, que entendo que devo
assumir… triste, mas verdadeiro. Num meio onde o individuo que pretende escrever

é visto como um parasita e com a agravante de que se não há rendimentos palpáveis,
então a “doença é grave”, está feita uma parte do quadro: “escondi-me”, “adoeci
subitamente”, refugiei-me dos olhares penetrantes de quem encara “estas coisas da
escrita” como uma perda de tempo, própria para vadios . E se calhar até têm razão,
os meus queridos detentores de todas as verdades, até porque o mundo é pequeno
demais para que eu o consiga entender e quando se chega à parte onde se encontra o
umbigo, o do outro, nunca o nosso, é uma complicação… e então, houve a necessidade,
a “urgência da escrita”, para finalizar o mais rapidamente possível o que tinha entre
mãos. Claro que preferia ter redigido noutras condições, com outra disponibilidade
e envolvimento com o pequeno mundo que me rodeia, mas não se pode ter tudo… tive
um apoio inesgotável por parte do meu filho e da minha esposa, que abdicaram de mim
durante demasiado tempo e me ajudaram incondicionalmente no processo, os únicos a
quem devo um gratidão eterna e inominável pela compreensão que me dedicaram, e foi
o que sobrou… o resto, seria “dourar a pílula”, que talvez por tão amarga, ainda não
a tenha conseguido retomar original do texto para o rever e dar um rumo … mas tudo,
tem um tempo e cada um deles não mais curto que o outro, mas antes do mesmo espaço,
da mesma dimensão.

7-Um psicanalista francês, Jacques Lacan, diz que o estilo é o homem. Também aponta
que “ o estilo é aquele a quem me dirijo” ou seja, sempre minha fala, meu registro diz
respeito a um endereçamento. Sem endereço...não teremos fala, escritura, gesto, texto.
O que pensas disto?

Antes de mais e com o devido respeito, o tipo tem um sentido de humor que invejo,
por certo… e ainda bem que assim é: são poucas as pessoas mais deprimentes que as
pessoas ligadas à “área do ser humano” e artes, que as que se isentam do sentido de
humor… são um estorvo bem intencionado, mas não deixam de ser um estorvo.

E efectivamente, mesmo não conhecendo Lacan (mea culpa, mas não chegamos a todo
lado), conheço-me um pouco mais que nada e algo do mundo que me rodeia para tirar
partido dessa reflexão, tão acutilante: parto, sim, parto do principio que o individuo é
barro moldado pelo ambiente que lhe rodeia, quer o oprima enquanto ser humano, quer
o liberte pela comunhão de interesses, objectivos, afectos… e no entanto, por muito
que se queira evitar a ideia perigosa de que o homem não têm fronteiras geográficas
a delimitar, enquanto artista, a ideia subjacente, está lá: enquanto “poeta”, eu
não sou de lado nenhum, de ninguém, mas isto enquanto poeta ou pintor… assim
que “baixo à terra”, como ser humano não me consigo escapar a essa teia invisível
que é a circunstância, o território emocional a que estou circunscrito… e se por
questão de comodidade, se por uma questão de conveniência, se por uma questão de
sobrevivência, o endereço, o laço que nos entende e solta é o mesmo que nos prende, e
habituamo-nos facilmente a essa “ordem das coisas”, tão contestada quanto imutável
no tempo.

Encontramos essa evidência em qualquer parte, bem delimitada… até na poesia,
Adriana... até com o Sá Carneiro, quando pensava, escrevia e deixou ao mundo
que “Eu não sou eu nem sou outro/ sou qualquer coisa de intermédio”, que passe a
heresia aos puristas, tem tantas leituras quantas um grande verso pode ter. Não sei
quantas polaridades tem o artista, mas apostaria que ultrapassam as duas possíveis; ao
artista que se diz livre, pleno de voo, pleno e sem amarras, é já “outra coisa”, mas não
a mão humana; Ao artista que procura no mais além, no outro, no outro lugar o seu

ponto de referência e orientação, é já “outra coisa”, também, mas não ele próprio…
então, o ser ambíguo pode nem ser uma fatalidade, mas pelo menos dá uma grande
ajuda, e isso nem é motivo de preocupação, até porque não falamos de outra coisa
desde que o homem aprendeu a comunicar… o nosso lugar no mundo é uma fixação,
um interrogação a full-time que se digere muito bem, até porque a resposta anda por
aí, mas ninguém a viu, não há tempo… temos mais que fazer. (risos)

Contudo, claro que preferia andar por aí no mundo a espalhar os versos de Jorge
de Sena, “Nenhum mundo é meu. Todos estão em mim desde que existo.”, mas isto é
poesia, é a esfera do possível enquanto poesia, mas tão somente poesia… o poeta tem
uma tremenda habilitação para fazer revelações, mas tem pouca queda para revoluções
na explicação do ser humano… bem que tenta a aproximação, mas é sempre terreno
minado.
Quanto ao Lacan, vou colocar nas minhas leituras obrigatórias, disso não duvido…
(risos)

8-A pontuação é sempre...do leitor. Digo isso porque embora existam os pontos
(exclamação, interrogação, vírgulas e etc) de quem escreve, o sujeito que lê o faz
naquilo que pode associar suas próprias pausas. A poesia facilita o reconhecimento do
texto que vai ser outro sempre, a cada vez que lido vai depender da respiração do leitor.
Tens esta percepção ou achas que quem fala é somente o escritor?

A pontuação, como qualquer outra convenção, reparte os seus méritos entre o capricho
e a necessidade… a que sobra é a parte que nos faz falta. (risos)

Ainda no inicio, nos meus primeiros tempos na poesia, levei um “sermão” dum tipo
mal-humorado, acerca da pontuação dum texto que tinha enviado para a redacção do
DNJovem, que então era um suplemento dum jornal de grande distribuição, e que por
mais voltas que eu desse, não encontrava justificação para tamanha reprimenda: ainda
pensei em argumentar, ponto por ponto, que não, que tinha respeitado as regras todas
da casa, ou então alegar em minha defesa que o José Saramago, muito antes do Nobel,
também tinha uma relação difícil e incontornável com a pontuação, mas não… não
enviei mais nenhum trabalho e com isso, nem eles, nem tão pouco eu, ficámos a perder
grande coisa.

Na poesia, a pontuação é um luxo que não vemos assim tão abundantemente espalhada
noutras áreas da escrita; creio que há um respeito muito grande pela fluência da
palavra, pela sua dimensão enquanto um todo chamado verso, pelo intenso jogo
de “tentativa e erro” e consequente correcção, que não vejo em muito géneros. Por
vezes faz-se muita batota, mas essa só está ao alcance dos que andam há muito pelas
ruas da cidade, da cidade da poesia… quem mora nos “subúrbios” tem que ter muito
mais cuidado, andar com as contas da pontuação bem alinhadas e em dia, até porque
a concorrência é feroz e não perde uma oportunidade para fechar a “casa do poeta”
assim que lhe apanhe uma falta.

Quanto ao leitor? Ao leitor cabe sempre a última palavra, o último acento, mesmo que
não faça o menor sentido, mesmo que o “rosto” do poema fique desfigurado, por falta
duma figura de estilo que nem os prontuários se haviam lembrado, por uma falta de
fôlego que por vezes se confunde mais com falta de ar, por uma virgula tão absurda
quanto desnecessária… mas fazem parte do jogo, essas regras e não há como esquivar;

pena é que a “cadeira” do leitor seja diferente da do escritor e não é em vão que a
nossa percepção depende sempre muito do lugar que nos encontramos no mundo

Mas enquanto poeta ou escritor, ou algo que me valha, espero sempre um pouco de
paciência, até porque o Prontuário Ortográfico não é um objecto assim tão divertido
quanto isso… e se ainda viesse bem ilustrado e elucidativo como alguns livros que
todos bem conhecemos, do género do Kama Sutra, ainda vá que não vá… (risos)

9-Poderias apontar tuas grandes referências para escrever?

Adriana… agora, sim… sou apanhado de surpresa, e tenho duas hipóteses: a primeira
e a segunda! A primeira faz-me inclinar para “confessar” a minha admiração por
Milosz, por Rimbaud ou Maiakóvski, por Pessoa ou por Whitman, por Malcolm Lowry
ou Emily Dickinson, e a lista podia ir até ao céu. A segunda é que conhecendo um
pouco de alguns excelentes poetas, bons escritores, extraordinários músicos e pintores,
não me sinto especialmente inclinado para apontar um nome, uma “escola”, uma
influência. Recolho, como penso que muitos de nós, com uma agradável sensação
qualquer poesia que me faça sentir tolo, declama-la só por declamar, na minha
privacidade, mas nenhuma referência forte, nenhuma herança em particular pretendo
tomar dos que tenho por meus mestres: escuto-os, trago-os e sigo o meu caminho,
aquele que procuro, aquele a que Emerson se referia como o Caminho em Si, nada
mais…

Por outro lado, é quase inevitável a música, a omnipresente música… aquela com que
escrevo, aquela com que leio, aquela que tem que estar sempre por perto, isso sim,
confesso… e mesmo assim, não tenho uma referência, um género que me faça sentir
perto da minha zona de conforto… apontar nomes é difícil, mas “estou em casa”
quando escuto algo da Virgínia Astley, dos Durutti Column, do Jan Garbarek ou do
Gismonti, sinto-me bem com a Björk quando não necessito de tanta concentração,
trago da estante os poucos Chet Baker que tenho quando estou de bem com o mundo…
e ficava dias inteiros aqui, a discorrer sobre cada um deles.

Mas se há dois ou três nomes que me colocam em sentido… é aí que pretendes chegar?
Certo! Na poesia, o Ramos Rosa e o Al Berto, na literatura contemporânea o Murakami
e o Rushdie e o grande livro da minha vida, não hesito, é “O que Diz Molero”, do Dinis
Machado… e há mais alguns por perto, mas não digo….

10-O que te faz ...escrever?

Com as devidas distâncias e diferenças, acredito que é o mesmo que move o Cristão,
o Muçulmano, o Judeu, o Hindu a recorrer às suas Igrejas, aos seus Credos; uns
chamam-lhe Fé, outros podem-lhe chamar insondável magnetismo, mas basicamente, o
que nos move e nos une são as semelhanças: as idênticas buscas, as idênticas dúvidas,
a idênticas recompensas que em principio nunca virão ou não chegarão a tempo, mas
confortam-nos, preenchem-nos, dão sentido a um caminho, apontam perspectivas,
alinham horizontes… todos vagos, frágeis ou meras ilusões, mas movem-nos, fazem do
nosso corpo inútil algo de válido para o mundo, ainda que de forma efémera, sempre
efémera… e tudo isso raramente tem uma explicação racional, não é verdade?

11-Amante ... a palavra amante diz respeito a estar em busca do amor. Para além de ser
objeto amado, o amante está ciente que sua busca é constante. Para quem lida com as
palavras isso é mais do que uma verdade...é o ponto de partida. Não findam as faltas e
nem as palavras. Pensaste nisso ao escolher o nome do blog?

Quando iniciei o blog, a Barca, não tinha a menor ideia do que poderia decorrer, nem
me “assaltaram” os dilemas do nome a dar, essas coisas pequenas; Intuía apenas que
queria regressar à escrita, ao texto poético, ainda que as bússolas não fossem muito
claras no sentido a tomar. Então, em sinal de homenagem a uma canção que nem será
necessária a explicação da importância que tem em mim, ficou e foi ficando como A
Barca dos Amantes e até hoje ainda não tive problemas com o titulo que nem sei se
está registado, e que a posteriori descobri que se tratava também dum romance de
António Barreto, do qual não fazia a menor ideia… mas regressando ao titulo, o lado
mais simbólico, ao escolher o nome do blog, esteve sempre relacionado com a própria
definição de poesia, que encontrei sempre, desde o primeiro instante, nos versos da
canção do Milton Nascimento e do Sérgio Godinho. Foi um pouco por intuição e sem
pensar que o blog pudesse ser associado “a mais um blog de poemas de amor”… já
aconteceu, mas paciência. O curioso é a própria Barca dos Amantes, não ter até hoje
tido uma alusão que fosse à expressão, à palavra “amor”, um pequeno poema que
fosse… e não é por preconceito ou defeito, mas deixo os poemas de amor a quem os
sabe fazer, e rendo-me perante um “bom poema” de amor… mas esse não é o meu
caminho: acredito que uns nasceram para cantar o amor, outros para vivê-lo, outros
para o tornarem possível, outros para o arquitectarem, mas por agora, nem um poema
de amor, até hoje… mas quando acontecer, haverá festa!

Contudo, essa busca constante, esse amor incondicional, esse lado mais vivido do
que temos por amor, “cantar o amor”, é um terreno que pode estar minado pelo
preconceito, por uma linguagem emocional muito defeituosa que por norma é a que
nos cabe, pelo que não conseguimos trazer do melhor que temos, do espelho que vemos
pela manhã; não é fácil fazer um “poema de amor” e se o fazemos, a interpretação que
se lhe dá está muito próximo do “confrangedor” e cheia de futilidades, lugares comuns
e outras barbaridades, e então… prefiro experimentar a minha incondicionalidade à
palavra, ao mundo, escreve-la como “carta de amor”. Mas adianto, que a haver um
primeiro livro, retirado da Barca dos Amantes, um enxerto sereno que possa vir, terá
um nome completamente diferente, que já anda há muito cá dentro e já deixei sinais,
meros sinais…

12-Ficaríamos honrados se nos contasses um pouco do teu dia a dia, do que te inspira a
escrever, das coisas que gostas de fazer...

Não é uma pergunta fácil sobretudo quando estamos numa fase de transição, num
desejo de passar a outra fase da vida, em que é imperativo tomar opções, marcar
roturas, solidificar o que muitas das vezes nem nos apercebemos no quotidiano.

E ao contrário do que sentia Octávio Paz, que para ele “a poesia e o pensamento são
um sistema de vaso comunicantes. A fonte de ambos é a minha vida: escrevo acerca
do que vivi e vivo.”, a minha forma de estar no mundo e na vida, pouco ou nada se
reflectem na poesia que escrevo, nas pequenas coisas da vida que me fascinam. A
minha forma de estar na escrita, gostaria de argumentar, vive mais do “reflexo”,
contemplação e desejo, que propriamente do quotidiano, que o mais das vezes é

enfadonho e banal, e ainda mais para uma pessoa vulgar, como é o meu caso, fútil, o
mais das vezes.

A grande parte da “experiência” que trago em mim, que ainda sobrevive no tempo, é
o que resta do tempo em que vivi no Algarve, perto do mar, demasiado perto dum mar
contemplativo e sereno, como é o Mediterrâneo, completamente diferente daquele em
que “quase nasci” dentro, o Atlântico, selvagem e triste, perto de Lisboa. Aí, boa parte
do que trago e exploro ainda hoje, nasceu por completo, aí , durante o período que
morei no Algarve, onde as memórias não se conservam como “vastas feridas”, citando
Chico Buarque, mas apenas memórias, tão somente, e ainda as vou reescrevendo, como
se o sereno Mediterrâneo estivesse por perto, esse aí…



                                            mar de Algrave, mar de dentro

Actualmente vivo numa pequena aldeia, no interior do país, onde tudo aparenta ter um
prazo definido, um pequeno paraíso em ruínas quase. É no pequeno quintal, por detrás
da minha casa, que quase todos os poemas da Barca nascem, ainda que não utilize
a expressão “inspiração”, ou pelo menos duma forma directa: o horizonte que me
rodeia é calmo, mas duma calma tensa, os caminhos parecem abandonados, a sensação
de “pertença”, a serena pertença de quem ama e dá o peito pelo lugar onde deveria
pertencer, desvanece-se dia após dia e costumo dizer e já não é em tom de brincadeira,
que um dia o carteiro vai deixar de passar por aqui… é a sensação que tenho do país
que habito..

Então, é ausência de fronteiras, mapas ou bandeiras, que se materializam lentamente
e sem pressas, na terra da escrita, na poesia, nesse fértil terreno das letras, esse o meu
próprio país, ao qual me entrego por não me reclamar tudo, o todo de mim… dou o que
posso, o que sei, o que sinto, e se mais não posso, não posso…


13-Publicações...?Como é a política de publicação de literatura ou poesia, aí em
Portugal?

Nessa questão hesito um pouco, até porque as opiniões não são consensuais quanto ao
assunto e fala-se muito em torno desse “problema” mas diz-se muito pouco ou quase
nada; é fácil ter uma opinião acerca de tudo e mais alguma coisa, mas como não me
seduz a “tudologia”, prefiro manter alguma distância ao opinar sobre o assunto.

As queixas são frequentes, aqui como em qualquer país… e não deve ser muito
diferente em Portugal ou no Brasil, como na Nova Zelândia ou no Canadá: todos
reclamam e ninguém tem razão, como na casa onde não há pão.

Eu, pessoalmente, como não tenho contacto com o mundo da edição, também não tenho
por onde reclamar, e muito antes pelo contrário: o suporte virtual tem-me ajudado
imenso a percorrer o caminho mais longo, aquele que semeia e contempla, o deserto
inevitável do escritor… a proximidade, a empatia e arrisco, a amizade que encontro
no mundo dos blogs não tem paralelo, quero acreditar, no mundo da edição, em que os

critérios são relativos e um pouco “nebulosos”… mas só entra nesse mundo quem quer,
não é verdade?

Neste momento, não penso na edição seja do que for, e o “momento económico e
social” não acredito como propicio, e as pessoas, aqui e em geral, têm mais em que
pensar que em livros de poesia: os tempos são difíceis para editar, porque também
estão difíceis para o leitor que gostaria de comprar um livro, e então, há que parar
um pouco e pensar… mas, todavia, não implica o encerrar portas, de forma nenhuma:
não perco de vista um sonho antigo, renovado todos os dias, o de ter a minha própria
pequena editora e trazer desse lado do Atlântico e naturalmente deste lado também,
pessoas, poetas incríveis, trabalhos de alguns que me estão muito próximos, duma
forma ou de outra, com uma qualidade tão absolutamente desperdiçada que, passe a
expressão, dá dó de tanto desperdício… e daí ter adiado e adiado a hipótese de editar o
pouco que tenho reunido, do trabalho que tenho desenvolvido, porque quem sabe, se o
desejo se concretizar, não dê trabalho, também, ao Leonardo… (risos)

14-A solidão...Gosto de dizer que nunca estamos sós. Estamos, sempre em dois, no
mínimo: eu e eu mesma ( ehehe).Porém, reparo que quando se trata da escrita há o
mínimo do mínimo...como se, de fato, em algum momento fosse Um. Isso é complicado
e quase impossível já que o traço único é letra e sendo escrita, pensada ou falada já é
duas ou mais. Mas, repara que existe sim, uma solidão no ato de escrever. Concordas?
Como descreverias isso?

Pode não ser consensual, mas pela minha própria experiência, e pela forma como
encaro o “acto de escrita”, existe um momento em que a solidão na escrita é um
imperativo: a escrita, em si, é um acto solitário, a palavra “exige-nos” muito para
nos devolver tanto ou um pouco mais… mas não rejeito, de forma nenhuma, uma
outra forma de “acontecer a palavra”… essa é a minha forma, mas não a considero
universal e linear. Desconfio da forma rígida e metódica de escrever, do indivíduo
que convoca a assembleia da palavra para uma reunião das tantas às tantas, e fica
o problema resolvido; procuro um mínimo de ordem, mas de uma ordem equilibrada
entre a exigência e o caos. Tenho uma relação com a palavra, e nessa relação não
posso ser o único a ditar as regras da casa… “a inspiração” não tem horário ou
calendário, e a percepção que tenho do “meu tempo com a palavra” é semelhante
ao de qualquer outra relação… por vezes não estou disponível, inteiro, e noutras é a
palavra que “me nega”, não vem, mas tudo isso faz parte do equilíbrio da relação…
nem sempre há uma disponibilidade de parte a parte…

Mas voltando ao essencial da questão, à dicotomia escrita/solidão, não creio que haja
consensualidade, até porque estamos a falar de significados em constante mutação,
assim como os seus intérpretes, nós mesmos, que nos encontramo em permanente
tentação de interpretar conforme o “conforto” que as interpretações, nossas ou
alheias, nos trazem: dou um exemplo, Adriana… durante quanto tempo fez e ainda faz
parte do imaginário social que o poeta é um tipo que escreve com a caneta na mão e
com uma arma na outra, pronta a disparar? Não é aí que começa o “mito do poeta”, o
suicida em potência, o grande estereótipo do Grande Poeta? Não é aí que começa, no
fatalismo, na autodestruição, o mito do Grande Músico? Não será essa nossa relação
com os estereótipos, com a solidão do acto de escrita, com o poeta suicida, com o
pintor que corta orelhas, um tanto ou quanto precipitada, embora cómoda? Não será

pedir demais, ao artista, que se atire para debaixo do comboio em andamento, como
se fosse condição essencial para validar aquilo que exprime enquanto ser vivo, não
como mais uma “natureza morta”? Não será pedir demais aos que para serem apenas
artistas, simples artistas, poetas, pintores, músicos, que não é condição para “entrar
no céu”, a obrigatoriedade de ser grande, a urgência de ser bom, excelente, o maior
e por aí a fora?... Não será doentia essa necessidade de ser o melhor, ter um talento
desmesurado para ser validado o ser que é tão-somente e apenas… humano? Não é
suficiente o dom, o dom da partilha, o dom da entrega, o dom de receber o próprio dom
sem que se vá a correr ao editor mais próximo a pensar que vamos vender milhões, ser
o próximo Pessoa, ser famoso? E para sê-lo, a que preço?

A solidão como acto saudável e quando utilizado na proporção certa é, creio, o ponto
de equilíbrio entre o eu e o outro, o próprio ponto de contacto… como o silêncio, esse
grande maestro da grande orquestra da palavra, em toda a sua extensão. A solidão,
vejo-a como um “acto de tempo” necessário, um quase dever para com a escrita,
mas nunca uma obsessão doentia, uma obrigatoriedade que devora e limita. Mais
preocupante é, isso sim, a “solidão imposta” pela ausência dos que pensamos que nos
rodeiam e contudo… estamos sós, como tão bem imprimia Drummond no seu A Bruxa,
que “Nesta cidade do Rio/de dois milhões de habitantes/ estou sozinho no quarto/estou
sozinho na América./Estarei mesmo sozinho?”… essa solidão é terrível e para o bem
ou para o mal, vai sendo compensada com as redes sociais, com o mundo virtual que
se vai tornando a única família do solitário… e isso sim, é preocupante: o solitário
raramente quer estar só… o solitário, o mais das vezes foi abandonado pela presença,
ainda que seja “brutalmente” reclamado pelos que o rodeiam, mas o valor da relação
é cada vez mais residual, pois que exige apenas “o corpo presente”… e o ser humano
não foi programado para ser “solitário”, não acredito… basta olhar de perto para
o “solitário” que passa horas e horas, em frente ao computador, a comunicar… “a
comunicar”, e esse é o alimento do ser humano…

15- Barco e porto...Ser o que carrega e estar onde recebe. Há algo nisso que faz pensar
no encontro como possibilidade. Estando no mar, avistamos, sonhamos com a terra.
Estando na terra, a imensidão do mar. No trajeto portamos algo, uma esperança que
nos faz. Também o desejo para além do que alguma espécie de destino já diz o que é.
Pensei nas grande navegações, naquilo que não sabiam e que lhes causava desejo de
saber. Arrumar o barco, todos os dias, para percorrer um caminho, uma palavra, um
destino. Incerto como todos são. Os destinos...são dos portos ou dos barcos?

Essa resposta gostaria de descobrir, ou melhor, sendo uma dupla questão até se
responde por si, se não nos tentarem os lugares–comuns: há uma ideia generalizada
que o Português é um refém da saudade, dos “bons velhos tempos”, do “antigamente
é que era”… não é em vão essa conotação, embora seja redutora, porque não há um
Português, mas dez milhões de Portugueses, todos diferentes e por vezes… todos iguais.
Por outro lado, é denominador comum a vontade, o à vontade com que esse mesmo
Português lida com as tecnologias, como a ideia do “lá à frente”, estar sempre “à
frente”, com a obsessão da novidade, do “progresso pelo progresso”… o que “é novo
é que é bom”. O António Variações cantava muito bem esse estado de espírito que “nos
move”, no Estou Além, “Sempre esta sensação/Que estou a perder/Tenho pressa
de sair/ Quero sentir ao chegar/Vontade de partir/P'ra outro lugar/Vou continuar a
procurar/ o meu mundo, o meu lugar/ Porque até aqui eu só/ Estou bem/ Aonde não
estou/ Porque eu só estou bem/ Aonde eu não vou.”… e esta ambiguidade, esta forma
de estar condiciona-nos e faz de nós grandes poetas de naturezas mortas e artistas em

constante busca. E então do tempo, nem se fala… temos um livro e não temos “tempo”
para o ler, mas já estamos a planear comprar mais um ou dois; temos um computador e
já estamos de volta das novidades nos catálogos, dum novo, de nova geração, com mais
memória e uma montanha de aplicações que nunca se irão utilizar, mas são “boas”;
temos um filme para ver, mas estamos já a pensar nuns quantos que são novidade… e
podíamos ir por aí fora, nessa quase devoção à novidade, à nova tecnologia, ao novo
amigo no facebook, ao novo, novo, novo, tão extenuante que não deixa tempo para
apreciar o que vamos adquirindo, as experiências que “vamos vivendo” mas raramente
pensando, os amigos que “vamos fazendo” mas raramente lhes dedicamos o “nosso
tempo”, aos livros que “vamos comprando” e o mais das vezes “estão lá na estante”…
e assim vamos ficando reféns do passado, com “saudades do futuro”, sem poiso
certo mas confiantes no destino, no fado, esse jogo de sorte e de azar… são lugares-
comuns, e são os que temos, que aceitamos resignadamente, confiando que alguém faça
o “nosso trabalho”… andamos há oitocentos anos nisto e não é agora que vai mudar,
assim, sem mais nem menos, tão abruptamente.

Fomos educados a olhar com demasiada frequência, para o “outro”, para o “outro
lado”, para o “impossível”, a procurar no “vizinho” os nossos próprios defeitos,
e daí a propensão para nos tornamos peritos em assuntos menores e mesquinhos,
sem utilidade aparente… mas para além desse gene que herdei, que herdámos como
Portugueses comuns, ainda acredito que somos porto e barco, mar e ilha, um território
imenso onde nos podemos encontrar, partilhando o que se encontra, procurando;
acredito numa geração que vislumbro e que saberá como desfrutar o que faz, o que lê,
o que pinta, o que sente, uma geração que procure em si a primeira questão e resposta,
que procure em si o valor sentido, o peso da sua própria linguagem emocional
projectada para o mundo, mas passando por si própria, antes de tudo… é motivante
apreender no horizonte esse “corte”, essa ruptura com a “ausência necessária”, essa
não inscrição por questões de sobrevivência, e nesse particular, o escritor, o artista
poderá ter uma palavra a “inscrever” se não se remeter ao papel de bibelot, mero
adorno estético e desnecessário… não é fácil, mas quem disse que o poderia ser?

16-Gostarias de deixar registrada mais alguma coisa?

Naturalmente, que gostaria… ficaríamos aqui dias a olhar para esse mar, falando,
trocando de emoções, trocando de palavras, trocando, dando e recebendo. Mas já o sol
se põe, e a maré está de mudança e interpretemos isso como um sinal…

Recupero, umas palavras que ficaram noutras marés e tão bem aqui cabem: “Todo o
furacão de emoções que me tem avassalado nos últimos tempos, e um reconhecimento
que “desconfiaria” noutras circunstâncias, ainda que soubesse como caminhar sobre
as águas sem me molhar, tem sido uma das provas mais gratificantes da minha vida,
mas com a ressalva que não “quero ser engolido” por sombras ou ilusões; sei que os
dons devem ser partilhados e os méritos só podem ser reconhecidos por outrém, mas da
mesma forma que tudo o que partilho por prazer, da mesma forma posso partir, quando
essa força, esse prazer, esse “dom”e me faltar… escritor é para escrever, como ao
artista de teatro pertence o palco.” E assim sendo, ao trabalho, A Lavoro!

E deixo, agora, sempre, um Abraço que faça corar de vergonha os tamanhos desse mar
que nos separa, Adriana, um Abracimenso!

Leonardo,sinto-me emocionada por ter estado contigo nesta pequena entrevista.Sinto-
me assim por senti-lo tão próximo, embora estejamos longe de doer; pela tua palavra
que me traz todas as águas, como concha que compartilhas connosco. Neste eco me
fazes escrever mais, numa confusão de espaços em que quero ser porto e barco, para te
receber ou te portar. São para sempre bem vindas tuas indecentes palavras, pela verdade
dos amantes além mar.

Beijo com todas as letras

Adriana bandeira

Leonardo B., poeta português-http://abarcadosamantes.blogspot.com/

segunda-feira, maio 02, 2011

Presente de Leonrado B...como indecentes palavras que se dá e recebe antes de sonhar

A Nuvem Improvisada ou Duma Resposta ao Salmo de Huchel

                                        Para a Adriana Bandeira, com admiração e estima




«Nenhum mundo é meu.
Todos estão em mim desde que existo.

E a minha voz nasceu para falar do último,
Porque ele nunca existirá,
E é incrível que não haja fim.»

Ocaso IV, de Jorge de Sena




Saberemos, por certo
como ler os silenciosos traços
os nós dos brancos espinhos, nas tão claras
e improvisadas cinzas em azul quase céu,
como sombras espalhadas pelo corpo adentro
as primeiras palavras aclaradas pela manhã.
E dos moldes que se trazem da coronária matriz
do salmo, da melodia
saberemos, pelo breve toque na vaga pele do dia
no pouco antes, o que na hora se guarda estreito
a hora
que pelo toque das matinas, tomará do primeiro sopro
do pouco vento, o peito do pássaro acontecido
em chamas
e no renovado horizonte,
o abrigo duma manhã mais no mundo.


Dir-nos-ão insignificante,
a sombra espalhada pelo corpo adentro
e em segredo, por nos sabermos nesta manhã
os primeiros habitantes imaginários,
quase anjos rupestres, e contudo
o fruto do ventre
acontecido por cântico da terra
por pássaro que nos acorda,
acontecido sino do tempo,
o sopro que nos reclama
em improviso e imperfeita cópia do primeiro instante.
E no peito, a percepção da estrela que trazemos
por provisório coração, a estrela armilar
onde por uma manhã construímos uma casa,
será átomo, um pouco de ar
o manuscrito improvisado, da onda
uma asa quase, dentro da palma da mão.


Então,
haveremos por refeito, o livro, o dia
a porta aberta
e por luz, o poema
desalinhado, adentro revolvido, improvisado
salmo e sombra, o espinho agreste
que saberemos trazer do traço,
e por perto, por nuvem
o acontecer novo do mendigo fiapo do céu,
o acontecer adivinhado, e contudo
não mais que uma manhã renovada no mundo.


Maio 2011, 2

Leonardo B.
http:/abarcadosamantes.blogspot.com/

ENTRE A PALAVRA E O GESTO,UM ASSOVIO QUE SE FAZ PRESENÇA-Contando histórias com o grupo Válvula de Escape




1-Quero lembrar da proposta inicial, quando o grupo estava se formando...Lembro que a idéia era de formar um grupo para o texto de Clarice.Sou apaixonada pelo texto de Lispector.Tanto, que por vezes retorno aos que já li e ele sempre me é muito estranho, diferente.É o tipo de escrita que se está para o leitor, ou seja, nós é que somos outros e reconhecemos isso na leitura.Pois bem...para mim, Clarice nos traz essa possibilidade.Quando a proposta de um grupo parte de um texto, ali nomeado está o dito deste grupo.Quando o texto é de Lispector...o dito prevê o SER, ou seja, esta mudança inerente ao EU.Então: porque Clarice?

Diego Ferreira – A principio, gostaria de agradecer em nome do Grupo Válvula de Escape por esta oportunidade, obrigado! E gostaria de dizer que adorei o título: “Entre a palavra e o gesto”, bastante significativo para nós. E em seguida gostaria de esclarecer que a proposta inicial não era de formar um grupo específico para a montagem do texto de Clarice, mas sim a criação de um grupo teatral voltado a questões sobre a criação, fomento e compartilhamento das artes cênicas contemporâneas. E em apenas num ano acreditamos que conseguimos, mesmo que de maneira tímida cumprir com esta tríade acima elencada: Criação (Criação e manutenção do espetáculo “Assovio...”), fomento (fomentar e discutir a arte na cidade e tem sido uma constante do grupo na criação de vários projetos criados para fomentar e difundir o teatro) e compartilhamento ( através das oficinas desenvolvidas ao longo do ano passado e que terá prosseguimento neste ano). Até mesmo por que antes do Válvula houve a tentativa de criação de outros grupos que não deram certo devido as agendas corridas dos integrantes e muito em função das atividades destes integrantes junto a UERGS. Pois bem, quando me formei no final de 2009, a atriz Lucimaura Rodrigues também graduada na Uergs me confidenciou sua vontade de retornar aos palcos e eis que ali marcamos um encontro para definir o que faríamos dali para frente. Então em janeiro de 2010 nos reunimos e logo em seguida convidamos a Ana Denise e Martina para se unirem a nós. Ali nasceu o Válvula de Escape.
E quanto a Clarice, bom, como foi uma proposta que foi sugerida por mim, era um desejo, uma vontade de transformar esse livro tão instigante da Clarice em teatro, em ação, em cena. No início fui tomado por uma euforia e entusiasmo para levar a cena a história de Macabéa, mas depois, no meio do processo um desespero tomou conta de mim, pois percebi que a história era complexa demais para ser transformada em cena, mas era tarde demais e decidi não desistir e enfrentar a Clarice de frente, foi quando optamos em realizar o espetáculo no porão da estação, foi ali que o espetáculo ganhou força e base para ser levado a cena, mas não foi fácil dialogar com este texto que não é especifico para teatro, é um romance, aí já temos um obstáculo, mas olhando agora, após as apresentações percebo que conseguimos um resultado satisfatório e digno frente a grandiosidade e complexidade da obra de Lispector.

2-Percebo que o grupo foi se renovando, agregando novas pessoas, desde o primeiro encontro, em que eu mesma participei. Aliás...é bom as pessoas saberem que o artista faz exercícios físicos que...Não pude caminhar no dia seguinte!( eheheheh). Pois bem, conte-nos um pouquinho da trajetória, das escolhas, da confirmação deste grupo que hoje apresenta ‘“Assovio no Vento Escuro”.

Diego Ferreira – Bom, depois do encontro inicial, nos reunimos poucas vezes e precisávamos de mais pessoas para a formação do grupo. Então tive a idéia de oferecer um Workshop de três dias de duração que aconteceu no Teatro Robertão (e que você participou), para selecionar mais cinco atores para se agregar a nós, destes 5 selecionados dois ainda estão atuando conosco que são o Léo e a Tuane, mais a Adri que não atua no grupo atualmente, mas auxilia na produção e penso que retorna este ano como atriz.  Sim, o ator faz muitos exercícios físicos, o que chamamos de treinamento físico, pois a forma que um ator tem para comunicar-se com o público á através de seu corpo, da sua poética. O corpo é o nosso instrumento de trabalho, portanto temos que treinar ele todos os dias e o treinamento ocupam grande parte dos nossos ensaios. São exercícios puxados, cansativos, exaustivos, mas que são necessários para que o ator possa encontrar e trabalhar a sua presença cênica e a sua poética de trabalho. O trabalho de um ator não se resume em decorar um texto e entrar em cena, por trás desse trabalho, existe muita dedicação, estudo e criatividade. Quanto à renovação, penso que como somos um grupo novo, com uma curta trajetória, neste primeiro momento a idéia é a de tentar manter os integrantes que iniciaram e que puderam se manter, para que através das conquistas que obtivemos no ano passado possam ser intensificadas neste ano. Trabalhar em grupo exige que este coletivo se conheça, criem confiança entre si e na direção e nossa aposta é a de um trabalho contínuo focado no trabalho do ator. A renovação se dará através das oficinas oferecidas, que neste ano terá a duração de 8 meses com a montagem de um espetáculo no final, e os alunos que se destacarem poderão fazer parte do Válvula no ano que vem.
Adriana Cruz – À medida que as pessoas vão se conhecendo o grupo foi formando uma identidade, é o resultado das atividades realizadas pelo grupo, cada um contribuindo co suas experiências e se adaptando um com os outros e assim o grupo está criando a sua poética.

3-Chegamos ao título do espetáculo de vocês... Lispector e Assovio tem muitas coisas em comum.Tratando-se do texto que leva em conta estes EUS, os que surgem num discurso, na palavra, agrego isso a nossa de significante.Coisa minha.pois bem, o significante é um traço mínimo que faz diferença, que perpetua escolhas, mesmo que não saibamos.O assovio é um traço  mínimo, é um “ soar”, escorregar a voz, reconhecendo o pedido ou aviso de algo.Mas, este zumbido embora fundamental é somente fundamental.O resto é que faz canção.Pois bem: porque Assovio no vento Escuro?

Diego Ferreira – Tudo é significante. Tudo é signo. E os signos são transformados em significantes por aqueles que recebem este signo, no nosso caso, os espectadores. Essa tua leitura da palavra “Assovio” tem tudo a ver, mas não é a mesma que a minha e talvez não seja a mesma da Clarice, da Adri Cruz, enfim. Quero dizer que cada individuo “interpreta” conforme os seus referenciais, e assim acontece com a gente que faz teatro, nós como atores, “representamos” algo e o espectador “interpreta” a seu modo este algo que compartilhamos com ele. Por isso gosto de usar o termo “representação”, pois nós representamos e fica para o público fazer a “interpretação”. Sobre o título, como a nossa proposta não era a de levar a cena o livro “A hora da estrela” de modo literal, tal qual o livro, mas sim, adaptar e criar um novo olhar a partir deste mesmo texto, pensamos que não poderíamos utilizar o mesmo título do livro, senão estaríamos vendendo uma idéia que não era compatível aquela realidade da obra. Posso dizer que fomos fiéis a obra e ao mesmo tempo livres, pois nos permitimos a criar também e não somente reproduzir. Então procuramos outros títulos que viesse ao encontro da nossa proposta. Realizamos até uma votação interna e o título que venceu não foi este, decidi recorrer a Clarice, pois este livro tem 21 títulos juntamente com “A hora da estrela” e “Assovio no vento escuro” é um deles, acho que combinava mais com nosso propósito e com o nosso espaço. Mais poético e menos literal, nos permitiu a sermos livres frente a obra, entende.
Adriana Cruz – “Assovio no vento escuro”: o nome tem tudo a ver com a atmosfera que envolve a personagem, tem a ver com a poesia de Clarice, a poesia do Válvula.

4-Gostaria de saber um pouquinho da trajetória de cada um de vocês e o que causa esta escolha pelo teatro. Sendo possível que colocassem seus nomes, apresentassem suas perspectivas.

Adriana Cruz – Eu conheci o teatro já adulta quando estava fazendo o magistério no Colégio São José, passou-se muitos anos e aquilo sempre ficou, aquele gostinho de quero mais. Quando finalmente tive um tempinho para mim, onde eu pudesse fazer o que eu gostasse como todo mundo, assim como tem gente que gosta de ir à academia, resolvi então fazer oficina de teatro na Fundarte, depois disso só foi... Adoro essa coisa de a gente poder ser outras pessoas, hoje eu sou um menino, amanhã posso ser um velho, etc.
Diego Ferreira – Bom, a minha relação com o teatro se estabeleceu de uma maneira inusitada. Comecei no teatro em 1995, ou seja, há 16 anos atrás. Estudava numa escola pública de Porto Alegre e para ter algo a fazer no contra-turno da escola, fui buscar algo diferente para fazer. Ao lado da minha escola, existia uma escola “especial”, dedicada exclusivamente para alunos portadores de necessidades especiais. Até eu adentrar naquele espaço, aqueles seres eram pessoas de outro mundo, o que tinha do outro lado da cerca causava medo, ou até desprezo, mas eis que a escola especial resolveu abrir suas portas para que alunos da escola regular pudessem fazer integração com os alunos especiais, através do oferecimento de diversos cursos como: esporte, música, dança, teatro, fotografia, culinária, etc... Fui lá conhecer os cursos e optei por fazer esporte, mas como vi que meus colegas estavam escolhendo teatro quis saber o que era, chamaram a professora de teatro e esporte e a professora de teatro com sua magia conseguiu me converter ao teatro. Desde então jamais interrompi minhas atividades teatrais. Essa oportunidade marcou e mudou minha vida de diversas formas. Primeiro pelo fato de poder desmitificar aquela idéia que eu tinha daqueles seres que existiam do outro lado do muro, são pessoas competentes, capazes de te cativar e compreender sua vida, vencer barreiras e limites. Aprendi a gostar e respeitar aquelas criaturas amorosas e compreensíveis. Fiquei 4 anos lá fazendo curso de teatro e depois comecei a fazer outros cursos, oficinas e seminários sobre teatro. Conheci muita gente até chegar na Uergs onde conclui a Graduação em Teatro em 2009 na Uergs e atualmente tenho me dedicado ao Grupo Válvula de Escape, nas funções de diretor e professor de teatro, além de realizar a direção do espetáculo “Wilma e Elza” que segue em cartaz pelo interior do RGS.

5-Existe o texto e o outro texto. Digo que este outro texto invariavelmente é a poesia. Quero dizer que a construção de um personagem não deixa de ser fazer poesia. Afinal estão: o escrito, o ainda não escrito e o SER. No caso deste Assovio, existe Lispector, a adaptação (muito bem feita) do texto, o que está para ser construído e o SER. O que pensam sobre esta construção?

Diego Ferreira – Sim concordo muito que a construção de um personagem é a construção de uma poesia. No campo de pesquisa em artes, falamos em criação de Poéticas, que representa o modo e a maneira que cada artista, cada pesquisa constrói o seu trabalho. Em nosso trabalho o texto da Clarice foi o grande norte, mas não o único. No teatro trabalhamos com DRAMATURGIA. E quando me refiro a Dramaturgia, não estou falando somente do texto, do drama, mas sim de dramaturgia(s), pois temos a dramaturgia do texto, do ator, do espaço, da música, da imagem, enfim, diversas dramaturgias que somadas formam um espetáculo. No caso do “Assovio...” o primeiro passo foi pensar na parte textual, pensada para um espaço convencional, um teatro. Era outro tratamento de texto, preocupado com questões da teatralidade, do escancarar a cena para o espectador, de uma Macabéa fantástica, repleta de signos e significantes, do onírico ao real. Quando decidimos o espaço, a configuração do espetáculo e do texto foi alterada e tudo se transformou em função do espaço. Agora teríamos que trabalhar com a possibilidade de o espectador estar junto na cena, ou melhor, imerso nela, sentindo a respiração do ator, então procuramos trabalhar com a verdade, jogar com a sinceridade, ao invés de trabalhar na caracterização dos personagens, potencializar o mínimo, para chegar ao máximo, desvelar as possibilidades que aquele espaço nos dava. Esse foi o nosso grande desafio, teatralizar um espaço que não é teatral, mas que de acordo com nossa encenação, passaria a ter uma configuração teatral, lógico que somando as dramaturgias já mencionadas aqui neste texto. Mas me referindo à adaptação literal do texto, foi um dos pontos mais difíceis e dolorosos do processo, pois eu não queria deixar nada de fora do roteiro, cortar fora as palavras de Clarice era dolorido, mas eu ia adaptando conforme as improvisações dos atores, o 1º esboço deu em média umas 50 páginas, o 2º em torno de 30 páginas, depois vieram muitos esboços até finalizar num roteiro de 11 páginas que foi ficar pronto uma semana antes da estréia, priorizamos o diálogo entre as personagens e eliminamos 90% da narração, centramos na história de Macabéa, sendo que o livro não conta somente a história dela, mas sim, o dia a dia de um escritor frente à criação (no nosso caso, o escritor foi transformado na figura de Clarice Lispector interpretada pela Lucimaura, que guia os espectadores) e sobre o processo de escrita em si. Adaptar não é somente cortar trechos e rearranjá-los, mas sim tentar encontrar um novo modo de contar aquela mesma história, eliminando e agregando novos elementos a esse novo material.
Adriana Cruz – Acho que a adaptação de um texto é a essência do texto original sob a ótica de um determinado grupo. É a “nossa” verdade.

6-Na estréia (e eu gosto das estréias porque elas mostram a potência do texto, dos personagens e dos artistas) o diferencial marcou a cidade. Não estamos mais num palco fechado, com sujeitos que assistem sentados a alguma trama. Não existiu os que assistiam. Fomos convocados a estar. O tal SER estava tanto nos personagens do texto do Assovio, quanto os que acabavam habitando nossas identificações com as palavras vindas dos artistas. Como vocês sentiram esta vibração?

Diego Ferreira – Eu também gosto das estréias, pela novidade, pela expectativa criada em relação ao espetáculo, tanto dos artistas, quanto da platéia, mas gosto de rever após algum tempo o mesmo espetáculo, para ver como o grupo solucionou questões, amadureceu o espetáculo e venceu alguns obstáculos que na estréia ainda poderiam estar desajustados. Creio que “Assovio...” marcou a cidade sim, por vários motivos, pela utilização de um espaço não convencional para apresentação de um espetáculo teatral, também marca a cidade pelo fato de oferecer uma temporada de teatro, com sucessivas apresentações, sabendo que geralmente os espetáculos aqui apresentados são apresentados apenas uma vez, no máximo três vezes, então queríamos e queremos começar a mudar a cultura da cidade em relação a isso, a formação de platéia, mas para se ter público tem que haver ações que convidem este público a estar participando do evento teatral. E este é um belo exemplo. Quanto à vibração do público na estréia e demais apresentações penso que... Ops! Surpreendemos-nos com a recepção do público, que compareceu e que participou abraçando esta idéia, este projeto. A vibração era verdadeira e os atores sentiam isso e revidavam em cena, em ação, em emoção! Foi emocionante ver o público habitando os porões da estação, dando vida aquele lugar.  
Adriana Cruz – Bem, por motivos pessoais, não pude participar da estréia, pois tive que “abandonar o personagem”, mas só o personagem, o grupo não. Porém quando fizemos o nosso primeiro ensaio aberto eu ainda estava no elenco e fazia a personagem Glória e lembro bem as emoções que tive, era de tudo um pouco, medo, ansiedade, curiosidade e empolgação, tudo misturado. Mas o medo era o mais latente, pois eu me preocupava  com as reações que as pessoas poderiam ter diante das provocações que a peça fazia e que a minha personagem propunha, e a minha personagem era abusada e gostava de chamar a atenção. Lembro bem quando provoquei um espectador através de olhares e beijinhos, e a pessoa ficou tão desconcertada, que desviou o olhar, sendo que nesta hora eu quase perdi a concentração, o ritmo, pois eu não esperava esta resposta, pois a maioria da platéia estava bem à vontade com a relação estabelecida. Essa proximidade pode ser tanto positiva quanto negativa e tive que me concentrar na personagem para não perder a concentração.

 
7-Do “ ar livre”, da “ Estação dos trens” para o subterrâneo...nenhuma condição , nenhum trânsito representaria melhor a proposta.Do amplo ao restrito.Nele uma infinidade de perspectivas, ditos, sensações.Como foi esta elaboração, esta escolha ?

Diego Ferreira – Esta escolha deu-se dentro do processo de criação do espetáculo, a princípio pensávamos num espetáculo para o palco italiano, tradicional. Como realizávamos nossos ensaios no porão da estação, chegou um momento em que aquele espaço já havia marcado nossa criação. Foi quando resolvemos assumir esta proposta de encenar uma peça num espaço não-convencional. Até então, a estrutura da peça e do texto era caótica, sem nexos, sem sentidos, apenas estávamos “tentando” criar um espetáculo de teatro convencional, mas era tudo exagerado, personagens estereotipados, propostas absurdas, mas tínhamos o desejo de fazer, de tentar, de aprender com nossos erros. Com a chegada do André, nos assessorando filosoficamente, o projeto deu uma virada de 360º, pois ele nos ajudou a pensar e explorar os personagens sob outro viés, analisando cada um e explorando eles sob outros aspectos.  Mas quando assumimos este espaço enquanto palco conseguimos visualizar possibilidades de leituras, como esta que tu fazes, potencializar signos e evidenciar a teatralidade do espaço, criar ilusão, mas ao mesmo tempo destruir a ilusão e mostrar ao espectador que aquele momento que estamos compartilhando com ele, é teatro, é mentira, mas ao mesmo tempo, é uma mentira com verdade. Desmitificamos a ilusão da caixa cênica e seu aparato de iluminação e som, criando uma cena aberta, com atores, espectadores e técnicos no mesmo plano, ora criando uma ilusão, ora destruindo essa ilusão antes proposta. E chegar ao espetáculo que o público pode conferir foi uma tarefa árdua, de escolhas de caminhos e propostas, decididas no dia a dia dos ensaios, como montar um quebra-cabeça, um painel com várias referencias, vários signos propostos e expostos, mas que sem dúvidas foi o espaço que nos deu, lógico que tivemos uma pesquisa e criação neste espaço, mas aquele espaço foi um personagem muito importante neste processo, tanto que não cogitamos a idéia de realizar a peça em outro espaço.  Inspiramos-nos no teatro desenvolvido pelo grupo Porto-alegrense “Ói nóis aqui traveis”, em sua proposta de teatro de vivência, onde o espectador é convidado a celebrar a cena, participando ativamente do espetáculo. No nosso caso, absorvemos esta idéia do espaço, de o ator e o espectador compartilhar do mesmo espaço, espaço pequeno e apertado, aproximando e colocando o espectador dentro da cena.

8-O texto traz à tona verdades como : a morte, a solidão,a esperança,a condição.O que, para vocês, ficou mais contundente no Assovio?

Diego Ferreira – É... não somente o texto, mas toda a obra de Clarice denuncia este mundo repleto de incertezas, de aparências. Para mim ela dialoga muito com o ser mulher, e com o existir, existência. Somos um na imensidão vasta do mundo. Penso que a obra de Clarice, além das verdades, traz diversas referencias cotidianas que fazem o leitor mergulhar e se identificar com a história proposta. No caso de “A hora da estrela”, a obra desvela referenciais contemporâneos como a Coca-cola, as Lojas Americanas, a rádio-relógio, o Rio de Janeiro, signos que são cruciais para uma identificação com o leitor deste universo que denuncia a pobreza tanto de espírito quanto social de Macabéa fazendo um contraponto com o capitalismo das grandes cidades, do consumo, do acesso a informação, mesmo que esta informação não seja compreendida. Fica a impressão de que somos seres fragmentados, incompletos, sempre em busca de algo que tentamos preencher vazios, lacunas e às vezes não encontramos...
Adriana Cruz – As “verdades” como a morte, a solidão, a esperança, a condição, o que para mim fica mais contundente foi à solidão e ver como uma pessoa pode ser tão solitária, sendo que Clarice foi uma pessoa muito solitária apesar de estar sempre rodeada por muitas pessoas.

9-Existe um segredo que faz com que, num grupo, todos estejam, de fato, no que fazem. Esta unidade prevê as diferenças, se estamos falando de um grupo de verdade verdadeira ( eheheh).Como vocês lidam com estas diferenças?

Diego Ferreira – Tu sabes que discutíamos sobre isso em nosso último o encontro, estávamos lendo um texto sobre o trabalho do ator, de uma entrevista do ator e diretor Cacá Carvalho, e ele fala muito sobre isso, mas ao invés de falar sobre diferenças, ele fala sobre individualidades. Somos um coletivo formado por indivíduos, onde cada um traz junto os seus referenciais, seu histórico, seu corpo e sua identidade. Queremos uma unidade, mas prevendo que está unidade seja construída pautada na liberdade e individualidade, pois não podemos apagar ou ignorar o histórico deste indivíduo, e isto me interessa muito, o que o ator tem de interessante, e que eu posso aproveitar e roubar dele e o que eu tenho de interessante para repassar a eles, essa é a base da troca. Trabalhar as individualidades, as potencialidades de cada um para tentar decodificar e instaurar um processo de grupo, onde todos estão inseridos. Partindo daí penso que conseguimos estabelecer contatos para trabalhar a diferença e fazer com que esta se transforme em potencial criativo de grupo, ou seja, se transforme em uma determinada poética coletiva, que na verdade são micro-poéticas individuais que somadas se transformam em poéticas do Válvula de Escape, entende.
Adriana Cruz – Às vezes, é difícil para mim, porque somos todos muito diferentes, com histórias e históricos diferentes, experiências de vida e de idade. Então temos que ter muita paciência, pois existem os acelerados e os devagar, os que falam de mais (como eu), e os que deveriam se impor muitas vezes não se manifestavam, mas isso foi no inicio, onde procuramos nos respeitar e ir se encaixando uns aos outros.

10-Poderiam nos contar uma coisinha engraçada, uma mania ou “esquisitice” de cada um?( eheheheheh).

Diego Ferreira – Quando falo em individualidades, lógico que temos características em cada um, não vou citar nomes, mas eles vão reconhecer aqui cada um, mas temos aqueles que falam de mais, mas não sabem escutar, aqueles que estão sempre atrasados, os negativos e pessimistas. Mas nesse tempo em que estamos trabalhando juntos muitas coisas aconteceram, por exemplo, nos ensaios e apresentações, pelo fato de trabalharmos no lado externo da estação lidamos com o imprevisível, e quase sempre temos a presença de cães que às vezes atacam aquelas figuras vestidas de preto, uma vez tínhamos aqueles pássaros, “quero-quero” e a Maura ficou assustada com a possibilidade de ser atacada em cena aberta, e também temos as crianças que hoje em dia são nossos parceiros, mas no inicio dos ensaios externos gostavam de interferir na cena, o que não era de todo ruim, pois era uma proposta que possibilitaria isso e os atores teriam que jogar com o imprevisto.

11-Na reunião de janeiro estive com vocês e esqueci a máquina e ...Pois bem, neste encontro percebi uma certa leveza, uma certa tranqüilidade.Isso é fato?

Diego Ferreira – Sim, naquela ocasião não estávamos em trabalho, estávamos apenas reunidos, era uma reunião de produção e encaminhamentos para o ano de 2011, então estávamos livres e descontraídos. Mas durante o trabalho, quando nos reunimos para ensaiar e treinar, muda um pouco, pois temos que criar um espaço de concentração, onde tudo o que possa nos atrapalhar fica do lado de fora, e dentro fica a vontade de produzir e compartilhar com o grupo, não deixando de lado o prazer de estar ali comungando com o outro a possibilidade da criação cênica. Durante os ensaios, dentro desta zona de concentração cria-se também uma tensão, que é bem vinda ao trabalho, mas às vezes essa tensão se transforma em explosão, daí sim temos que parar e conversar e tentar resolver. Mas um dos princípios do grupo é o prazer, o prazer de estar ali, presente e entregue de forma verdadeira.

12-Então: diretor é..?Figurinista? ...Existe uma coordenação do grupo?Como ela é feita?

Diego Ferreira – Somos um coletivo, um grupo. A única distinção que existe é que eu atuo como diretor e os demais como atores ou músicos, mas isso não impede que um dia eu assuma o papel de ator e alguém assuma a direção, já que temos pessoas capacitadas para isso. Enquanto grupo Válvula de Escape é assim, mas é lógico que não trabalhamos sozinhos, e para produzir um espetáculo precisamos de profissionais aptos em suas determinadas áreas, como por exemplo, criação e execução de figurinos, da iluminação, do projeto gráfico, de um bilheteiro, de um produtor, divulgador, etc... Mas enquanto grupo somos assim, mas não quer dizer que também não executamos outras tarefas, por exemplo, por enquanto, nós mesmos somos nossos produtores, elaborando projetos, cuidando das finanças e divulgando nosso trabalho, mas a medida que o trabalho vai se desenvolvendo, percebemos que precisamos mais desses profissionais ao nosso redor, pois isso reflete no todo do trabalho e o que queremos é sempre poder oferecer o melhor ao público.

13-Preciso dizer que fiquei muito agradecida com o convite para assisti-lo.Fiquei também surpresa já no primeiro momento em que a atriz nos convida para o futuro.Certo! Ele a todos recebe.Várias “ sacadas” me fazem crer que o texto de Clarice pegou vocês, porque ele é virulento.Como epidemia, vocês passam adiante e por aí vai ( eheheheh).Pois bem,perguntei  à vocês no dia da estréia e pergunto agora: como vai ser?Ninguém sai impune, depois de estar tão próximo de Lispector.Quais as conseqüências sentidas por vocês em estarem personagens, lidarem com seu texto, enfim...o que isso causou em cada um?

Diego Ferreira – Sim o texto da Clarice é quem nos convida ao futuro, o texto em questão, “A hora da estrela é de 1977 e ainda ecoa como algo tão visionário e infelizmente tão atual, ao tratar da pobreza da personagem, nordestina e pobre de dinheiro e de espírito. Quanto mais avançamos parece que mais mazelas assolam o País e Clarice retrata isso muito bem em sua obra, mas de maneira ousada e poética. O texto, ou melhor, a obra dela nos pegou completamente. Eu já conhecia alguns de seus livros, e ousei em propor logo de cara para um grupo que recém estava se formando criar um espetáculo baseado em sua obra. Ousei e ousaria novamente, pois eu acho que a arte e o teatro, especificamente, é feito assim, de ousadias, de riscos, não podemos antever aonde chegaremos quando propomos algo como este projeto, poderia ser outra coisa entende, mas resultou nisso por causa de diversos fatores. Lógico que não saímos impunes, nem tampouco poderia, pois a escrita de Clarice deixa marcas, e isto é maravilhoso, ver o que um texto pode transformar a vida de uma pessoa, creio que muitos espectadores também saíram diferentes do que entraram no espetáculo, e isso é muito bom, pois assim conseguimos alcançar um dos nossos objetivos, trazendo esta obra a cena, que era o de provocar assim como fomos provocados e incitar que mais pessoas pudessem conhecer as obras dela. As conseqüências, no geral, foi ver a transformação, o percurso, o entendimento dos atores e meu durante o processo, pegar o texto, adaptar, cortar, inserir outros textos, decorar e corporificar literatura em ação, dar carne e alma aqueles personagens que são papel e entender esse processo, sofrer, ter crises, se emocionar e emocionar ao outro. Lembro de ensaios em que saia completamente frustrado e arrependido de ter feito uma escolha tão difícil quanto esta, e temer que aqueles atores não dariam conta deste mundo complexo que é Lispector, mas ao mesmo tempo tinha ensaios em que me emocionava, chorava e deslumbrava o que poderia vir a se tornar todo aquele processo turbulento. Por isso penso que participar de um processo criativo tem que estar disposto a correr riscos e disposto a conhecer novos caminhos, diferentes daqueles que eu já conheço, pois somente assim, poderemos nos revelar através dos personagens. E a nossa relação com Clarice segue adiante, pois os atores continuam lendo a sua obra, adquirindo novos livros e isso é maravilhoso, eu ganhei do meu elenco no final do ano a nova biografia de Clarice escrita pelo Benjamin Moser, e que eu adorei, pois mesmo nos dedicando a outros projetos, o contato com a obra dela continua presente em nossas vidas.

14-Notícias: voltam com o Assovio?Estão criando algum outro texto?

Diego Ferreira – Sim, o “Assovio...” fez uma nova apresentação em março dentro da programação do “Teatro para Escapar”, mostra que organizamos para comemorar o dia internacional do teatro e do nosso 1º aniversário e cumpriu nova temporada na 1ª quinzena de abril, que foi muito bacana para nós, mas agora vamos manter este espetáculo em repertório, sendo que não temos nenhuma apresentação prevista para este ano, mas quem sabe retornaremos a cartaz com ele, enfim. Mas temos outros projetos para este ano, e o 1º deles já está acontecendo, que é uma Oficina de Montagem Teatral, onde terá como resultado uma montagem de um espetáculo que será apresentado em dezembro também na Estação. Em maio faremos uma oficina de dramaturgia e que teremos que apresentar uma leitura dramática sobre um texto da Sarah Kane, provavelmente em Julho ou Agosto, e estamos em processo de montagem do nosso próximo trabalho, “O Pequeno Príncipe” dirigido a todas as idades que estreará em abril de 2012. Este trabalho foi contemplado com o Fumdesc, que é o fundo de apoio a projetos artísticos da cidade, e que ficamos muito felizes de sermos contemplados. Então trabalho não nos falta, agora e se fechar novamente em sala de trabalho e criar.

15- Gostariam de dizer mais alguma coisa?

Diego Ferreira – Agradecer pelo espaço, pela presença e por nos auxiliar a difundir a nossa “válvula” a outras pessoas através do seu blog. Agradecer o seu olhar atento acerca do nosso trabalho e te convidar para estar sempre presente conosco. Gostaria também de divulgar o nosso blog, WWW.escapeteatro.blogspot.com, lá vocês podem encontrar muitas informações sobre o nosso trabalho.

16 - Para mim foi um acréscimo ter estado com vocês. Muito do “Assovio no vento Escuro” já disse no comentário, que se encontra por aqui e no blog do grupo Válvula de Escape. Mas aqui ,falo do grupo, das pessoas e não somente da produção.Fico grata pela forma como vocês protagonizam uma diferença de postura, de condição para o artista de cada um: participante. Isso não é um texto que faz.São as pessoas!Esta marca que vocês inscrevem tão bem faz rasura sem retorno na nossa rua, na nossa vida, na nossa língua que é somente forma de falar. A cidade agradece numa postura já modificada em que subterrâneos são estações que dizem do tempo de antes de depois.

Diego Ferreira – É, percebemos também que o nosso “Assovio...” foi uma diferença mesmo no cenário cultural da cidade por vários motivos: oferecemos uma temporada contínua do mesmo espetáculo, o que não acontece na cidade; utilizamos um espaço não-convencional para apresentarmos um espetáculo; realmente é uma mudança de postura necessária e muito bem vinda, que venham novas propostas como esta, pois a cidade das artes tem que ter espaços para todas as diferentes linguagens artísticas. E o que você escreve nesta última questão é realmente poético e lindo, parabéns e obrigado. Beijos do Válvula a você também. Um grande abraço e até uma próxima.

Beijo com todas as letras
Adriana Bandeira


Diego Ferreira é ator, professor e diretor do Grupo válvula de Escape. Graduado em Teatro pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. escapeteatro@bol.com.br
Adriana da Cruz é atriz e colaboradora do Grupo Válvula de Escape graduada em Direito.