quarta-feira, dezembro 29, 2010

A nudez é sempre humana,a palavra também


Chamo Leituras freudianas a possibilidade de pensarmos a psicanálise como parte de nossas vidas. Depois da descoberta de Freud nunca mais foi possível separar alguns conceitos, percepções e mesmo saberes que cada um carrega de forma peculiar. Podemos pensar que estes conceitos servem somente  para alguns e que, certamente, metade da população não sabe nada sobre psicanálise. Isso seria verdade se estivéssemos diferenciados por alguma rede não humana, uma capa protetora capaz de barrar a transmissão de saberes através da linguagem. Quando falamos que psicanálise é para quem pode pagar, não estamos lembrando que o pagamento de muitos diz respeito aos sacrifícios do corpo nos efeitos colaterais dos remédios, distribuídos gratuitamente; muitas vezes está num diagnóstico pseudo-psicanalítico que imprime numa criança o termo: hiperativo; nos excessos de uma visão deturpada de infância que faz com que as crianças possam tudo porque Freud falou isto ou aquilo. São os conceitos usados de forma inescrupulosa.
Existem famílias em que, por motivos óbvios, dormem todos no mesmo quarto. Pensar isto como uma forma incestuosa não tem nada a ver com psicanálise. É o mesmo que marcar um poema de Hilda Hilst como: pornográfico. Escutar o que ocorre nesta organização, na poesia de Hilda...,sim!
É neste aspecto que não há como dizer que a psicanálise não existe para alguns. Há um saber em todos os que passam por estas vivências, de uma forma ou de outra. Porém, resta lembrar  algumas questões para fazer valer a descoberta freudiana: quando se trata de escuta psicanalítica e quando se trata de escuta que exerce poder sobre o outro? É esta a diferença... uma ética que nasce com o desejo de analisar, somente.É este o desejo do analista.
Estes lugares: analista, psicanalista, analisante são de uma mesma pessoa, são lugares subjetivos ocupados em diferentes momentos. Os psicanalistas não estão isentos de suas paixões, de seus sofrimentos e de suas dúvidas. O que fazem deles analistas é o tratamento que conduzem, suas perspectivas em pesquisa e suas vivências sobre sua própria verdade, no divã. Vale lembrar que os analistas estão atrás do divã, pontuando, apontando, interpretando...também silenciando. Os psicanalistas estão discutindo os casos, escrevendo, pensando. Os analisantes estão deitados no divã, indiscutivelmente por muito tempo, por algum tempo, vez ou outra... por algum tempo, por muito...Não tem fim, até terminar! Assim como não tem fim o desejo de fazer poesia.
O brilhantismo de Freud, porém, não diz respeito aos conceitos, somente. Não!O que é raro e surpreendente é sua virtude em querer saber a respeito do sofrimento humano; abrir uma escuta onde já estava determinada uma prescrição (precisamos lembrar que Freud era um neurologista, estudava a fisiologia das enguias, sendo um dos precursores na descoberta das sinapses cerebrais).
Colocar o saber do lado de quem fala, daquele que diz algo sobre sua dor é apostar na potência de cada um. É neste aspecto que Freud transmite o que de fato institui uma análise: o desejo do analista de colocar-se a escutar o Outro, a fala.
         A psicanálise, neste contexto, é fundada numa ética e sem ela na há psicanálise, ou seja, não há o analista e seu paciente. Pode haver outro tipo de par... não este.
É Lacan que nos ajuda a pensar em Leituras Freudianas. Na sua releitura da obra de Freud resgata os termos em alemão (aqui entre nós, um tanto modificados nas traduções, o que ocasiona diferenças fatais nesta ética psicanalítica), as vivências, a prática de Freud, instituindo a condição de que à qualquer um, que tenha interesse em psicanálise, está dado ler o texto inconsciente, reinventando-se, interando-se sobre sua verdade. Lacan nos convida a descobrir, a exercitar uma escuta em que o saber está suposto nesta linguagem que sempre é falha.
Mas... por que Leituras Freudianas num blogue?Oras!A psicanálise está nas pessoas. E não se trata de tentarmos fazer encaixar um sujeito num conceito psicanalítico (eheheheh). Não!O sujeito é que , vez ou outra se diz, revela-se nas suas paixões. Nisso a psicanálise e a poesia são todo o registro de um pedaço de possibilidade. Diria nosso amigo: a pontinha de um iceberg. Diria nosso outro amigo: nada é mais profundo do que a pele.
Freud, ao ser perguntado: Quem são seus mestres?, aponta sua biblioteca, seus livros com os quais tinha longas conversas também. Ali os clássicos da literatura. Pois bem...”Leituras Freudianas” está na rua pela simples razão de que foi na rua, com as pessoas, com os livros que Freud descobriu um traço Universal de humanidade. Para além das pulsões, mal estares, associações, descobriu justamente o falho, o que aparece sem querer e surpreende; para além da doença, ao contrário disto, fez mostrar toda a potência humana no ato de dizer-se para ser outro. Há ternura implícita na verdade que sempre aponta uma nudez. Esta ternura possível, num reconhecimento de falta, faz das leituras, únicas, e da poesia um ato do dizer.
Adriana Bandeira
Dezembro 2010

domingo, dezembro 26, 2010

Ensaio sobre o amor II


Naquele dia precisava dizer-lhe. Mesmo que o tempo pedisse a alegria das horas. Quase em silêncio,encantaria os pássaros que se alçavam dos ninhos.Era a festa da ternura!Há vida maior do que saber que se sabe ir embora?
Diria sobre minha incessante vontade de ouvir-lhe a voz nas ruas do dia.
Adormeceria para sempre, noite após noite escutando qualquer coisa, sua voz que se apagando restava no sonho, como parto de mim. Poderia contar de suas mulheres, de suas descobertas, suas denúncias. E tudo seria outra coisa pelo encanto de sua voz, registro feito desde criança no que se perde de lembrança. A voz é um eu inteiro!
Algumas palavras riscando meu corpo que abria em restos. Outras apenas me fazendo dormir.
Assim eu lhe diria: não nos veríamos mais a não ser se todas as noites fôssemos barco e cais. Acabei por escrever um bilhete que nunca entreguei: não volto mais.
Era verdade... Nunca voltei do vôo, de lá... de todas as noites que me dás.

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER- Uma noite em Buenos Aires com Carlos Karnas


1 - Olha só Carlos... acabei de me dar conta de que te conheci num quarto com divã (eheheheh). Explico: ganhei teu livro “Um quarto de mil” de presente, com uma indicação de que provavelmente gostaria. Comecei a ler e não parei mais... Mas, esta forma peculiar que tive contato com teu texto faz com que eu pergunte: o que tu tens a dizer sobre a psicanálise?
Que coisa, hein? Presentearam-te com feito meu e me conheceste em quarto com divã? Caramba! Não sabia disso, do local agora revelado. Parece-me maravilhoso! O que haverá de verossímil entre o fato (ato) e o meu "Um Quarto de Mil"? Daqui poderemos viajar por significados e significantes; pelo real, simbólico e imaginário até o 'corte', para utilizarmos termos psicanalíticos, não é mesmo? E como assim? - talvez seja a hora de perguntar. E o que eu tenho a dizer sobre a psicanálise? Simples: nada ou quase nada. Faço ficção. O meu descomprometido envolvimento com seres psicanalistas me fez observar que eles são tão comuns mortais e frágeis. E sacanas. Por vezes diferem tanto do ofício que praticam que o comprometem. Já os presenciei insossos, desinteressantes, medrosos e arrogantes Já percebi os que transam mal e as suas manias incríveis. Duvido do amor que muitos pregam. Entretanto carregam, conservam e sustentam um discurso. Diz-se um saber. Mais: têm o privilégio de saber das aflições, angústias, temores e a negritude da alma do analisando que quer dar conta da falta ou encontrar a saída para o seu impasse. Tudo e todos fazem 'sintoma'. Então, da psicanálise, endeusada por analista e pelo analisando, faço-a um fetiche ficcional. Nunca me deitei no divã, não me deitarei para análise. No divã penso em outras coisas prazerosas para o corpo e para a alma, mesmo que ele seja estreito. Ouço, os outros, falarem. Não procuro leitura sobre a psicanálise, mas não a desprezo quando surge. Imagino e crio diante do que ouço e leio. Provavelmente traduza o que surge de almas. Lembro do título “Escolha”, um dos meus contos do livro “Um Quarto de Mil”. Sugiro-te a releitura e que o (a) nosso (a) leitor (a) de agora o leia também. Provavelmente eu seja metafórico. Engraçado (ou gozo, gozado)! Ao receber essas tuas perguntas para respondê-las, sabes o que me veio à mente? Algo banal, mas melodioso, a letra de uma música de Nando Reis: “(...) Por onde andei, / enquanto você me procurava, / será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava? / Agora eu sinto a sua falta / e a falta é a morte da esperança, / como em dia que roubaram o seu carro / deixou uma lembrança. / Que a vida é mesmo coisa muito frágil, / uma bobagem, uma irrelevância, / diante da eternidade / o amor de quem se ama.” Joga isso para onde quiseres: canta, brinca, manipula, despreza. É psicanálise? Apenas um escrito? Palavras? Uma declaração? Uma canção? Algo mais? O quê? Eu me divirto e dou risadas com a mais de dúzia interpretações que vou estabelecendo agora na minha vertente. Então proponho para ti e leitores que também se soltem nessa vereda, com graça, leveza e pensar. Sem deduções. Não sofro o suficiente à ponto de abraçar ou ser abraçado pela psicanálise. Questiono-me, sim, incessante e insistentemente. Mas, na psicanálise, que é a dos outros e a de cada um, recolho belas histórias, alegres e sofridas. Na ficção se trabalha melhor a verdade.

2 - Também sobre ‘Um quarto de mil”, não reparei logo sobre tua proposta de escrever contos com, exatamente, 250 palavras. Poderia falar um pouco disto, de onde veio esta idéia?
Está lá em “Gênese”, o conto que inaugura o “Um Quarto de Mil”. Alguém pede ao porteiro um quarto de mil. Outro, o que está atrás do balcão, olha atônito aquele pedinte, nada diz e lhe alcança uma chave. O pedinte a pega, paga e se desfaz. “Afinal, que lugar é esse?” Está lá escrito. Serei eu ou o personagem quem pergunta? Quanto a mim, pessoa, talvez eu seja irrelevante, de existir limitado no permanente e interminável exercício de realizar coisas inconsequentes. Por isso desencavo dignidades assim como os meus próprios personagens. Produzo textos, contos com as imagens que capto, com os cotidianos lembrados, as alucinações, fantasias e tentativas experimentais com as palavras. A partir da leitura de muitos escritores e contistas, imaginei tentar algo diferente para mim. Os meus escritos ficcionais e intimistas, sonhados e experimentados, são cenas e fotografias humanas, são fantasias e intempéries as quais estabelecem as delícias e os conflitos dos amantes na penumbra e no fulgor de cosmologia aberta ou fechada. E onde acontece, o gemido da dor e do prazer? O momento de simplesmente cerrar as pálpebras? Mais propriamente em alcovas, onde o pensamento mais instigante permeia todo o resto que poderá fermentar no breu. Quarto, o ambiente, é intimidade e revelação, ao mesmo tempo templo de se praticar e conviver com o que se quer. Quarto é compartimento e nave. Pois então, por que não estabelecer aquela aliança simbólica entre o ambiente, os temas dos escritos e as personagens, num formato igualmente compartimentado de textos com exatas 250 palavras? “Um Quarto de Mil”. Essa ideia vingou na minha cabeça como uma marca e diferença para eu me lançar como escritor. Persegui isso com afinco, aplicação, alegria e sofrimento. Consegui a minha fórmula interior, talvez intelectual. Assim estabeleci um regramento à minha produção, ao meu desconhecido estilo de escrever. Pratiquei a exatidão com disciplina para estabelecer a marca que, agora, ninguém mais poderá me tirar. Ela é única, universal. Não existe na literatura o que criei e atingi. Enfim, a minha diferença e o meu diferencial. Sacrifiquei muitas histórias para elas se conterem em 250 palavras. Isso resultou num advento para o leitor: textos compactos, rápidos e fáceis de ler, mas com o impulso de se pensar no que está escrito, em se pensar mil coisas. Em 250 palavras há conto, que poderá ser romance, peça de teatro, sinopse de filme. Não te parece assim o meu “Um Quarto de Mil”? Penso que produzi contos ficcionais breves para o imaginário do leitor fluir. Quem não o leu, experimente-o.

3 - Teu texto é encantador. Retrata uma época, um tempo e os traços das relações pessoais. Num dos contos falavas das lacanianas e do quanto não aceitavam dividir seu divã com ninguém mais (eheheheh). A preocupação com esta idéia me custou uma protelação na minha vidinha (ehehehe). Pois bem, pergunto: o que você acha que mudou na forma das pessoas se relacionarem?
Êta perguntinha capciosa. Fico surpreso ao saber que um conto meu possa ter influenciado na protelação de algo da tua “vidinha”, como dizes. Que coisa, hein! A psicanálise não fala do mal-estar da cultura? Olha, eu nada sei sobre isso. Considero-me ingênuo e desqualificado para falar desse tema. Eu apenas observo comportamentos nas pessoas, nos casais. Tu citas um dos meus contos envolvendo psicanalistas lacanianas. “Leonina” é o título. Sei que muitas estão putas comigo. As lacanianas, especialmente, me surpreendem sempre. Percebo que não conseguem ser no real aquilo que elas mesmas discursam ou gostariam ser. Há dicotomia entre o discurso e a prática delas. Entre querer ser e praticar, as e os lacanianos que conheço se traem. Divirto-me com isso. Mas, sim, os relacionamentos das pessoas mudam, constantemente mudam. Vivemos tempos de exigências e não nos damos conta que exigimos cada vez mais. Estamos pouco tolerantes e a cumplicidade, me parece, é efêmera, está abandonada, esquecida ou se tornando desconhecida no semântico. Há fundamentações passadas e históricas que eram parâmetros nas relações. Mudaram, continuam mudando. Estabelecem-se os estorvos, os incômodos, os dissabores nos relacionamentos dos homens e mulheres, machos e fêmeas. Liberações, independências, autonomias e novas posturas se estabeleceram para o afloramento de muitos desejos. Parece que homens e mulheres (até elas) disputam virilidades permanentemente (viril = relativo ao homem, objeto das mulheres). Isso também acontece entre gays e lésbicas, apesar de entender que no homossexualismo os relacionamentos podem atingir graus extremados, em tudo (Esse universo está presente em muitos dos meus contos). Provavelmente estejamos vivendo confrontos de um novo aprendizado, com volúpia, pouca harmonia e muita angústia. Como escrevi em “Contornos”, um personagem desabafa: Acontece que de tempos em tempos me canso de ser homem. E me canso do meu rosto, dos meus olhos, cabelos, do meu corpo, do que vejo, da minha sombra. A fantasia me invade e me liberta, por pouco tempo. Ela é simbólica. Certas noites, sozinho, penso nela. Certas noites, sozinha, talvez ela pense em mim. Certas noites, se isso acontece ao mesmo tempo, nos relacionamos sem saber. Eu mesmo estou me dizendo isso. Que coisa, não é mesmo? Por isso me esforço em buscar nesgas compreensíveis na alma feminina, para mim e para aquilo que escrevo. Mas é difícil. O que quer uma mulher? Ela existe? Ah, essas e suas inconstâncias! Pois os meus contos do “Um Quarto de Mil” estão recheados de personagens inconstantes em cenários igualmente inconstantes. As intermitências humanas. Tentei estabelecer algumas inquietações sobre o gozo feminino e algumas desqualificações impostas aos homens. Nem sei se cheguei perto disso. Tanto é que fiz uma introdução – talvez filosófica neste meu livro. Escrevi: “E se forem esqueletos as minhas palavras? Não importa, te provei que ainda sou o que sou, depois de tantos anos. Meu coração, adocicado e rebelde, é acariciado pelo perfume de jardim existencial que o acolhe. Nele, convive com as artimanhas da vida. Persistente, ele te faz companhia ao seguires o teu destino.”

4 - Tu ou você? Pergunto porque és aqui do sul e moras, atualmente, em São Paulo. Poderias compartilhar conosco um pouquinho da tua história de vida? Tudo, tudinhooo não, somente um quarto de mil (eheheheh).
Há um romance meu, inconcluso, em que o personagem se defronta exatamente com essa questão: tu ou você. Há mais de um quarto de século longe da minha terra, Porto Alegre, de repente descobri que tinha perdido um pouco, ou muito, da minha identidade sulina. Isso me fez mal. Passei então a me desdobrar em falar ‘você’ no ambiente de convivência local, mas a praticar o ‘tu’ na linguagem escrita. Ultimamente tenho estado mais assiduamente no sul e aí percebi que tenho dificuldades de falar como gaúcho. Faço esforço para resguardar minhas raízes e a reentonar característica peculiar da fala gaúcha. O sul, o meu estado e a minha cidade me fazem falta. Cansei de vagar por terras estranhas e de estar tanto tempo em São Paulo. Tomei a decisão de voltar. É no sul, na minha terra que quero viver, morrer e então seguir para o céu de Aldebarán. No chão da minha origem tudo me encanta, me comove e me induz. Lá respiro e solfejo, vejo encantamentos, belezas e prazeres. Saí da minha terra sentindo-me um proscrito. Vivi todos esses anos como renegado, excluso. Minha formação profissional e acadêmica está no jornalismo. Contabilizo que exerci o bom combate por onde andei. Vivenciei períodos e cenas históricas e a minha participação, postura e atitudes me remeteram a ser personagem citado em alguns livros e obras de jornalistas escritores amigos meus. Citado e presente em narrativas generosas desses autores, um belo dia alguém me fez a pergunta que começou a ser repetida por outros e outros: “Quando vais escrever e publicar o teu livro?” Escamoteei-me do jornalismo e parti para a ficção. É onde estou. E contando verdades, e empregando a palavra ‘tu’.

5 - No nosso primeiro encontro nos reconhecemos em função dos vários emails trocados. Paguei o café prometido (ehehehe) que, se não me engano, foi no Margs. Neste encontro falavas da saudade aqui do sul. Como é viver em São Paulo? Como vês a tua terra, assim de outro lugar?
Não estás enganada, Adriana. Foi no MARGS o café pago por ti depois da nossa conversa em tarde fria na cúpula da Casa de Cultura Mário Quintana. O cenário do Guaíba, estar no local que conheci quando Hotel Majestic, as pessoas, a cultura, a vida e as belezas daí, a civilidade gaúcha e os meus próprios sentimentos me impelem fortemente voltar ao sul o mais breve possível. O trabalho e a minha atividade profissional me fizeram abandonar o sul. Mas, saí daí sabendo que algo deixava, que alguma coisa não estava na minha bagagem para as andanças que pratiquei por tantos anos. Família, profissão, tudo se reformatou em novas paragens, não o meu sentimento. Ele ficou amortecido e ganhei idade, tempo suficiente para saber que não sou feliz longe de Porto Alegre. É nessa cidade que tenho a minha origem, a minha história alegre, onde estão as pessoas amigas e companheiros que amo. É nessa cidade que sinto a vida pulsar, presencio pequenas singelezas e delicadezas difíceis de serem encontradas em outros lugares. Não importa. Minha identidade está em Porto Alegre. Penso que São Paulo me ganhou, me usou, fiz por São Paulo, mas nada mais tenho ou levo daqui. Cosmopolita eu aqui virei eremita. Vivo num sítio no interior. A cidade onde vivo me homenageia, é pacata, quase histórica. Mas o meu coração continua no sul, não tem jeito. Comecei a fazer incursões periódicas a Porto Alegre há pouco tempo. Descobri que perdi essência existencial por estar longe dela. Já morri demais.

6 - O texto, o traço do escritor é único. Um estilo que assina sua produção. Porém, no meu entendimento, os lugares de onde escreves são diferenciados. Por exemplo, como jornalista ou como escritor de contos. O que pensas sobre isto?
Sabes de uma coisa? Eu não me considero mais jornalista. Sou outra coisa mambembe, indefinida, à procura, o que agora escreve. Estou longe dos textos jornalísticos. Não os quero. Considerar-me escritor... acho que ainda tenho percurso para trilhar. Apenas abri uma nesga de incursão. Provavelmente tenha feito o meu ‘passe’, me autorizado - com a cumplicidade de leitores experimentais - a ser escritor a partir das minhas próprias experimentações e alquimias com as palavras. Senti o peso da responsabilidade de escrever e me obriguei a conversar mais aprofundadamente com outros autores. Temos um traço comum, a seriedade do ato de escrever. Há os que valorizam a história, outros a palavra ou a linguagem. Há os que se massageiam com as suas idéias e fantasias. Eu escolho a palavra, a linguagem. É ela a que me atém, nela e por ela me apóio. Escrevo muitas vezes meio que possuído por algumas entidades fantasiosas, místicas, espirituais, sei lá. Ao chegar ao final e ao reler o que escrevi, isso às vezes me espanta e eu não acredito ter sido o autor daquilo. Vou seguindo, trabalhando e convivendo com as minhas próprias intermitências. O “Um Quarto de Mil” foi assim. Outras criações minhas poderiam estar à frente desse livro. Entretanto, abandonei tudo o que já havia escrito para dedicar-me com exclusividade aos contos ficcionais breves de 250 palavras. A obra foi oferecida a diversas editoras, mas as propostas são indecentes ao autor. Então decidi fazer o lançamento independente da obra e me submeter, apenas, ao sistema estabelecido de comercialização. Criei uma página na internet e faço mala direta. Sem pressa. Quem se interessar vai lá: http://www.carloskarnas.com.br

7 - Trocamos... quantos emails, mesmo? Lembro que um dia tu me enviaste um número (eheheh). Para além das correções que me fazias, nos meus “atos falhos” ( é assim que chamas), falavas da preocupação com uma certa leveza, uma busca pela simplicidade de certos encontros, certos momentos. No teu texto, porém, encontramos  personagens que se dizem, que pesam nas suas escolhas. Qual a diferença entre escrever e viver?
Ambos pesam. Escrever e viver é existir. A existência é regida por sentimentos, desejos e imprevisibilidade. Também por atitudes. Nada é certo, nada é seguro, a não ser a morte, sem vida e sem textos. O tempo, fatos e atos nos impõem marcas indeléveis. Personalidades, histórias pessoais, vivências, experimentações, comportamentos, a genética e tantos outros ingredientes determinam nossos rumos. O inconsciente também. Vale tanto para o viver quanto para o ato de escrever. Mas, de todas as influências, o desejo talvez seja o mais relevante: o querer fazer algo que te marque e te estabeleça com dignidade. Acho que a vertente é por aí. Mas, enfim, talvez seja louvável o discernimento. Podemos impor nossos próprios pesos, mas não seria justo jogá-los, os demasiados pesados, para outras pessoas. Pelo menos de maneira inconsequente. Entretanto, há situações em que a realidade se impõe com tanta grandiosidade que não devemos ter atitudes falsas, cínicas. O ato de escrever é absolutamente solitário, único. O escritor se delicia com a prática, mas também sente a carga do ato. São os momentos, lampejos existenciais que nos impulsionam e nos determinam. Acho que isso acontece fortemente na escrita ficcional. Sempre digo que o conteúdo do meu livro é momento, instante ficcional. Parece ser, pode ser, é ou não é. Que cada um decida, que o leitor decida. A conotação é diferente para o que escreve biografia ou pratica a literatura reportagem, da história. Mas, continuo afirmando: na ficção se trabalha melhor a verdade.

8 - No nosso café, contou-me sobre a  troupe dos Karnas ( ehehehe). Estes filhos artistas! Poderia compartilhar conosco esta história?
Pois é, o estilo familiar acho que fomentou e definiu a trajetória dos filhos. Uma única filha parece seguir a vida normal, ao ser comerciante. Todos os demais enveredaram pela seara das artes e espetáculos. Um filho é ator, formado na EAD-SP, diretor teatral, também dançarino, faz preparação corporal de atores, faz cinema, é músico, compositor e tem a banda “Crika y Os de Solares”. Outro é ator de teatro e cinema. Os dois já se apresentaram em países da Europa e nos Estados Unidos. Uma filha perseguiu a mesma trajetória no teatro e cinema e hoje é professora de yoga. Por fim, o caçula, é artista dedicado à técnica do grafitti. Liberalidade, estilo e vivência familiar talvez tenham determinado o rumo de cada um. Tanto é que um deles, o adotivo – por querer ser adotado pela família –, chegou até nós pelo apoio e sustentação que dávamos aos demais filhos que se iniciavam na prática do teatro. Nossa casa sempre ficou de portas abertas ao meio artístico e cultural, do Brasil e do exterior. Significativos momentos culturais já aconteceram dentro da nossa casa.

9 - Manaus... Pescando peixe com uma antena?
Eheheh! Trata-se de uma charge feita por queridíssimo amigo meu. Engraçadíssima. Ao sair de Porto Alegre fui desenvolver um trabalho de reestruturação de uma rede de TV no Amazonas. Lá fiquei um ano. Esse meu amigo, para gozar da minha cara e das dificuldades que eu enfrentava, criou e me mandou uma charge. Eu era caracterizado como um ribeirinho manauara, vivendo numa palafita com antena parabólica e, sentado em atitude desconsolada, pescando peixe num rio, que poderia ser igarapé. Hilária a charge. Conservo-a até hoje. Sobre isso, refresquei a memória dele na última Feira do Livro de Porto Alegre. Não nos víamos há mais de 30 anos. Rimos felizes.

10 - Estivesse na feira do livro lançando “Um quarto de mil”. Como foste acolhido por estas bandas daqui?
Então, participar da Feira do Livro de Porto Alegre me foi emocionante. Há 30 anos, acho, que não palmilhava a feira. Fui assíduo visitante dela, como garimpeiro e comprador de livros. Este ano, com o lançamento do “Um Quarto de Mil”, alimentei a idéia de participar dela como autor. Pensei nisso até como ato de respeito, de oferta à minha cidade para nela lançar o meu livro num evento tão importante e magnífico. Pela metade do ano fiz contatos e comecei a trocar ideias com amigos escritores e jornalistas. Com a ajuda deles peregrinei todos os passos até a Câmara Rio-grandense do Livro aceitar a minha participação e agendar sessão de autógrafo. Na verdade foi esta a minha primeira experiência de autografar numa feira como a de Porto Alegre. Surpreendi-me, na noite de autógrafo, com a quantidade de amigos, companheiros e pessoas que compareceram para me prestigiar e me abraçar. Foi também um valioso e grandioso momento de matar a saudades de pessoas que não via há décadas. Muitas delas tive dificuldades de lembrar-me dos nomes. Defrontei-me com fisionomias que mudaram. Ao meu redor estabeleceu-se uma pequena confraria de jornalistas, escritores, intelectuais, políticos, parentes e desconhecidos que me propiciaram alegrias e bem-estar. Vivenciei uma tontice emocionada. A mídia me deu atenção inusitada e me ajudou muito na divulgação. Tudo me compensou e me deixou pensativo. Aquele momento alimentou ainda mais a minha vontade de voltar às minhas origens. É aí que eu vivo, sou alegre e feliz, aí na minha Passárgada cheia de energia, beleza, prazer e emoção.
11 - Entre vários emails um não me sai da cabeça ( eheheheh).  A receita de sopa de capeletti e aquele molho com tomates secos para o pãozinho torrado... Ah! Também aquela estória da maçã em fatias com nata, que eu duvidei que era bom, provei e... ( eheheheh). Desde lá passei a respeitar a mesa e me interessei a fazer coisas diferentes para reunir as pessoas. Pergunto: o que tem em comum uma boa mesa e um bom texto?
O manjar, minha querida, o manjar. O deleite para o espírito. Por viver só, num sítio, afastado da cidade e no meio da roça, desenvolvi gostos e prazeres particulares. Permito-me e proporciono-me manjares solitários, algumas vezes frugais, mas requintados. Um bom texto não proporciona justamente isso? Um alimento? Uma iguaria apetitosa e que enleve o espírito? Ah, o prazer! A linguagem! (Bah! Não sabia que as minhas receitinhas fizeram sucesso contigo! Uau!)

12 - Também a idéia sobre um saber... Lembro que decifraste algumas coisinhas como, por exemplo, minha paixão pela dança. “Adios Nonino”... Piazzola. Podes falar um pouco sobre tua relação com a música?
Música me é vital e talvez ela possa ser mais completa que a própria literatura, ao amalgamar palavras e melodias transformando-as em linguagem harmônica universal. Ouço música, escrevo ouvindo música. Aprecio a dança, bailados, pares dançando. Adoro o insinuante. Sou frustrado por não saber dançar e por não ter tido, ainda, a iniciativa de aprender. Mas é o tango com os bandoneóns, tocado e dançado, que me emociona mais. Para mim não existe aquela preferência por gênero musical. A música me é um afago sentimental e emocional. Se ela me arrepiar, fizer palpitar o meu coração e lacrimejar os olhos estará eleita. E ao elegê-la, desfruto-a como amante, com todas as práticas permitidas e não permitidas, pelo menos no pensamento e no imaginário. Por vezes os meus textos nascem a partir da música, desse lampejo fulgoroso para percorrer trilhas inimagináveis. Consciente e inconscientemente.

13 - No almoço de novembro combinamos:  comida leve e conversa mais leve ainda. Saladinha, tempo sem fim... Algumas coisas do Carlos eu desconhecia. Neste dia falavas sobre a ineficiência do direito: Adriana, para o amor não há lei. Há normas para separação de bens, casamento, união estável... Para o amor enquanto sentimento não há. Ficamos pensativos sobre: será que o amor é fora da lei? ( ehehehheeh). Pois é meu amigo... o que achas disto?
Putz! Será que cheguei mesmo a falar tanto assim? Pois é, a palavra ‘amor’ está tão batida que pode estar ficando banalizada para cair no desprezo ou desinteresse. Ando pensando em criar outra palavra, um novo termo com novo significado para a que usualmente está estabelecida. Sabemos tudo do amor? O que é o amor? O que é amar? Como se ama? E será que o ato de amar precisa da palavra? Pensando bem, o amor é fora da lei, porque o amor se estabelece entre dois ou mais seres onde prevalecem cumplicidades. As cumplicidades são particularidades de interesses comuns e cada ser é o seu próprio universo que não dita regras necessárias. Diz-se das formas de amar, maneiras de amar, atitudes amorosas, demandas de amor. Há regras nisso? Entretanto, os desfazimentos, mesmo os do amor, acabam condicionando deveres e obrigações, especialmente perante a lei e mesmo nos acordos particulares. É mais difícil e doloroso romper. Não há temores para se amar, pois o que virá sempre será bom. Romper, terminar, acabar sempre dão medo, mesmo quando necessários. O momento seguinte é o do desconhecido. Por isso ditam-se regras e lei. O assunto é infindável e sempre permitirá o idílio e o desprezo, o doce e o amargo, a leveza e o peso da nossa existência. Tudo para ser aproveitado e discorrido nas linguagens todas, pela palavra na literatura.

14 - Descrevias uma cena em que a mulher dançava de meia calça e pés no chão. Falavas disto tão intimamente que era como se descrevesse uma noite comum. Teu texto passa exatamente isto, uma procura pela cumplicidade ou, em alguns momentos, demarcas a falta disto. É uma escrita que mapeia um tempo. Talvez pelo instante das 250 palavras, talvez porque deixe claro a ficção restaurando as vivências de um homem de sua época. Vais me corrigir (eheheheh)?
Laconicamente: não te corrijo. A leitura é tua.

15 - Diz-me seguidamente: sozinho, em casa, eu danço bem! Falas também do quanto achas bonito o tango, naquilo que expressa de cumplicidade. Viste bem qual o título desta entrevista, hein? E o tango? Queres explicar?
Aqui, sim, devo te corrigir: eu não danço bem, pelo contrário, muito mal. Ouso dançar. Sozinho. Faço isso, ocasionalmente. Na verdade, sou parceiro e dançarino com as minhas emoções, sentimentos e fantasias. Pratico, eventualmente, a dança dessa forma e, por incrível que pareça, deslizo, rodopio e persigo ritmos. Aí mesmo, em Porto Alegre, uma amiga me convidou e insistiu para irmos a uma casa de dança. Suei frio. Era noite de tango. Encolhi-me, ela voltou a insistir. Fomos. Dançamos outros ritmos. Envergonhei-me. Ela foi uma dama, de fineza indescritível. Conduziu-me, pacientemente, meus passos e corpo ao ritmo. Depois ela me fez um comentário: a dança sempre deve ser praticada com parceiro ou parceira. O que se acostuma a dançar só perderá a desenvoltura ao dançar acompanhado. Cheguei a falar isso para ti? Não lembro. Sei que te falei em tango. O tango aparece nos meus textos como elemento existencial, apaixonante, deslumbrante, aliciador, pecaminoso, amante, envolvente, forte, de aceitação e submissão, cúmplice, parceiro e sexual. – Em “Submissos”: Imaginou qualquer similaridade ao tango e à paixão portenha. Então alguém surgiu como companhia experimental e ela pôs em pratica aqueles caprichos mais alucinados: os que constrangidos senhores de meia idade já não conseguiriam aprimorar por iniciativa própria. Por isso ela naufragou no seu instinto e liberou o licencioso que dela precisava ebulir.” Em “Cela”: “Ele já estava miserável, depois de presentear as suas riquezas amorosas e destinar um patrimônio para aquela mulher que o seduziu numa casa noturna em que os dois dançavam tangos e milongas.” Em “Despedida”: “Exalou seus odores generosos como se estivesse no cio. Excitada fez o convite para dançar ao som de uma musica derradeira. Um tango. Nessa arte, dor e paixão complementam o amor. Os corpos dos bailarinos se desnudam e realçam loucos desejos em passos decididos e elegantes. Na parada brusca a mulher afrouxa o sexo.”. Há também o conto “Restos”. Gosto muito deste –. Enfim, tango para mim é um universo. Há um filme, se não me engano de Almodóvar, intitulado Tango. Lindíssimo, uma ópera completa. Eu recomendo a todos para o assistirem. Comentei isso contigo, não é verdade? Caminhávamos pela Rua da Praia. Aproximava a nossa despedida. Passamos diante de uma porta e lá estava a placa: Aulas de Tango. Apontei para aquela placa e chamei a tua atenção. Sorriste. Percebi o leve balançar do teu vestido verde, o teu frescor. Então me disseste e propuseste-me: “Vou me matricular em aulas de tango. E iremos dançar tango uma noite em Buenos Aires”. Preciso ir mais adiante?

16 - No retorno de nosso almoço falavas de leveza. O que é leveza para ti?
É o que temos aqui. Felicidade.

17 - Gostaria de dizer mais alguma coisa?
Aqui no teu Indecentes Palavras, as palavras indecentes ainda não apareceram. A leveza, a arte, a magia das palavras, o sentimento, a emoção e o respeito determinam a vertigem. Há linguagem e arte estabelecidas. É poesia a que comanda. Tentei me conter nesse viés e nesse tecido. Às vezes ouso ser obsceno, não consigo. Conhecemo-nos este ano por iniciativa tua, ao me enviares e-mail a partir da leitura que fizeste do meu livro “Um Quarto de Mil”. Construímos uma correspondência particular e não desprezamos as oportunidades de nos encontrarmos. A palavra, a literatura e algumas confidências nos mantém. Apreciamos-nos e navegamos nesse córrego nem sempre manso. Há trechos turbulentos. Já experimentamos alguns exercícios juntos, como o de tentarmos escrever o “Contos do Mar Sem Fim” - algo que surgiu assim do nada, das nossas palavras trocadas, como um repente. Ele está suspenso, inerte depois de um corte. Sei do ar que precisas para respirar, para viver, para amar. Sei de algumas batalhas tuas, do teu permanente esforço de seguir, de ir, alcançar... o quê mesmo? Dou-te força, te desejo sucesso, te quero bem. Aprecio o que escreves, o poético e singelo que há em ti, na tua literatura, na tua linguagem. Instigas. Aprendo contigo. E penso em Aldebarán. E será que o teu leitor, o que está lendo agora sabe, conhece Aldebarán? Aldebarán poderá ser a nossa próxima e derradeira estação.

Carlos... sinto-me honrada por estares aqui. Sou grata pelo nosso encontro na vida, na rua (o blogue é estar na rua), nesta busca em comum pela leveza das coisas boas, esta brisa pequena que nos leva a pensar em Aldebarán, a pensar em seguir pelo MAR SEM FIM.
Beijo com todas as letras
Adriana Bandeira

O brinde de José Ernani Bandeira, o Melena


“... era uma poesia que nem sei quem fez. Acho que eu me lembro. Tu quebravas uma taça? É isso mesmo. Adorava ver as pessoas surpresas e as que já sabiam, encantadas. Lembra da poesia? Não...muitos me pediram mas eu não dei.Dizia que era minha , ahahahahah. Pois é...eu queria esta poesia. Não lembras mesmo?Acho que era assim: Ergamos meu amor um brinde/que seja sumário e muito breve/o nome que se quer quebra a taça em traços ideais...daí já não lembro.Espera aí.Vou anotar aqui neste guardanapo...pior é que esqueci o óculos!Vamos logo porque tu já não lembra e eu já nem enxergo mais!Vamos lá: Ergamos meu amor um brinde/que seja sumário e muito breve/o nome que se quer quebra a pena em traços ideais/Repara ,meu amor, que as flores para saudar-te se debruçam pelo vaso/Ah! Sim!É que a um anjo como tu quando se brinda/tem-se a missão cumprida e a festa finda/quebra-se a taça,não se bebe mais.
Não é toda ela viu? Não lembro...era comprida...e tem uma condição!Só te deixo este pedaço da letra se prometeres declamar.Prometo.Vou declamar “Um brinde de Honra”.Agora, mudando de assunto...onde eu errei, Aninha? Não sei .Acho que devias ter ido.Mas eu não podia!”
Agora podes, pai.
Herdei de meu pai o que carrego.Uma herança sem fim, uma felicidade imensa em brindar com todos os que tiverem pelo quê quebrarem suas taças. Um pedaço de letra que pode ser refeita todo os dias, continuar o que  é poesia, esta capacidade humana de dizer-se em qualquer tempo. Enquanto cegos ou desmemoriados, ainda  tendo o que falar.O blogue é estar na rua.Portanto, cumpro minha promessa declamando através daqui “ Um brinde de honra”para os que quiserem ouvir e declamar também."Ergamos,meu amor, um brinde..."

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Para vós, de todos nós

       Ouça o barulho da chuva. Entra pela fresta do meu céu, chão das tábuas ali de cima. Moro aqui onde a água palpita, no porão da casa vizinha.
                                                                                            

Ets

As estrelas invadiram o céu, num tempo diferente.Aqui do espaço perguntavam: de onde veio tanta gente?

Carne crua

Vem cá docinho!Bota a mão!Faço tudo: vendo um dos olhos,rins e coração.Cuido devagar, doando a placenta que cresce sem lugar.Fazem uns cremes com isso, uns remédios...Vem cá, docinho!Preciso trabalhar!

Estações

Ainda ontem te ouvi em mim.Tentei discreta dizer, não! Tarde demais...contavas um segredo e enrubesci de febre, como se fosse verão.Carregava-me lá para onde sei.É da palavra o tempo das estações.

Letra de bailarina

Algumas coisas não têm volta.Como o pé da bailarina e a letra vazada do escritor.

domingo, dezembro 19, 2010

Vinho do porto

Do mar vejo tua ilha.Encantada, armadilha pelo que me faz nadar.Desta terra de água, uma palavra  insiste em mim: respirar!O resto é toda a estrada a vir.Já estive lá?

AMOR DE ESCREVER O NOME - entrevista com Jorge Rein

1-Tive contato com teu texto, pela primeira vez, ao ler Contos de Abandono, coletânea que participamos juntos, de onde passamos a trocar emails.Surpreendeu-me a verdade com que fazias algumas transposições de palavra-cena,dramaturgo que és, sem perder o texto.É como se a cena seguisse em continuação da palavra e isto é a verdade.Pois bem...se concordas com esta minha  impressão, poderias dizer um pouco sobre tua forma de pensar o texto para teatro?
 R- Cheguei ao texto teatral quase por acidente, na pretensão de contar uma história que excedia os limites do conto, que tinha sido, até aquele momento, o caminho em que fazia andar as minhas narrativas. Talvez venha daí a sujeição dos meus textos dramáticos aos moldes de outras literaturas. Na ausência de estudos formais ou mesmo de interesse em conhecer a fundo as técnicas da carpintaria teatral na sua versão escrita, optei por descrever apenas a magia sem a preocupação de dominar os truques. Meu teatro é mais intuitivo do que teórico, e um tanto obsessivo nas rubricas, território em que abusa da subjetividade na tentativa de comunicação mais direta e profunda com a sensibilidade do eventual diretor ou do ator em potencial. Escrevo como se a leitura do texto fosse o objetivo, assim como acontece em outros gêneros. No teatro, porém, a publicação é uma etapa intermediária. O objetivo final é o da encenação, que altera o texto ao emprestar-lhe não só outras leituras, mas também outras escritas. Não sou ciumento em relação a isso. A encenação é uma obra coletiva, um processo em que algo se perde, algo se ganha e tudo se transforma.    

2-Há pouco tempo assisti teu texto sendo lido por excelentes atrizes. Nele trazia Marie numa fala sobre seu homem e suas incertezas.Causou-me emoção ao perceber nos dizeres  as de tantas vozes do feminino que perguntam-se sobre o “ lugar mulher”.Lembro que a fala de Marie, esposa de um homem que se deixou “ estudar” pela ciência( faz xixi somente nos potes capturados pelo médico, só come ervilhas, e outras obediências ) circula entre a prostituta, a mãe e a esposa.”Queria meu homem de volta...mas meu homem é do patrão”.Neste sentido Marie vem dizer sobre esta condição das mulheres de serem...de quem mesmo?Hoje mais do que nunca os homens são do patrão, de várias formas: patrão capital, patrão pobreza, patrão carro do ano, patrão política, patrão ciência, etc ... E as mulheres...também? Como inventaste Marie e sua fala?Como vês esta questão do pertencimento para homens e mulheres?

R – Marie pretende ser um resgate da visão feminina em Woyzeck, a obra clássica de Georg Büchner. É possível que seja a novidade formal que esta peça inacabada representou na dramaturgia da sua época que tenha garantido o fenômeno da sua permanência. Mas também é preciso reconhecer em Büchner o mérito de ter sido um precursor ao levar a um teatro burguês, ainda nem totalmente livre de um ranço aristocrático, o universo dos despossuídos, dos sem voz, dos humilhados. Nesta obra ele identifica alguns dos mecanismos que possibilitam o exercício dessa humilhação: a hierarquia militar, a petulância às vezes imoral ou antiética dos falsos próceres da ciência, as convenções sociais, as etiquetas, a corrupção social e política em todas as esferas, e até mesmo a igreja. São essas as instâncias em que o poder se expressa, vigentes até hoje com mais alguns acréscimos de globalização, moda, consumo, propriedade dos meios de comunicação, etc.  É contra essa estrutura que Marie se revolta. É essa a situação que ela não aceita.  Não a incomoda o fato de pertencer a um homem, prática que o casamento recomendava na época, mas não suporta assistir impassível à degradação do seu marido, que perde a dignidade e a condição humana em nome de uns trocados que possam garantir seu papel de provedor.  Ao vender o seu corpo Marie não está à procura de outro lucro que não seja o de cutucar a indolência do cônjuge através daquilo que ela mesma considera a humilhação suprema, porque acredita ser a última chance de redenção de Woyzeck. Sua própria imolação é o meio que ela encontra para recuperar a dignidade daquele homem, obrigando-o a cometer um ato que a sociedade aprova e que a justiça raramente condena.  Não é o tipo de heroísmo que eu pessoalmente recomende.  Não tentem fazer em casa.

3-Ainda falando de Marie... Ao escutar teu texto definitivamente tive certeza de que a escrita não é definida por um sexo.Quero dizer que tu enquanto homem terias uma “ fala feminina”.Como pensas esta questão do gênero na escrita?

R – Existem inegáveis diferenças anatômicas entre homens e mulheres.  E é bom aproveitá-las.  Porém, quando invadimos o território da criação artística, a sensibilidade fala mais alto do que hormônios e glândulas.  E a sensibilidade pode ter sua porção inata, mas obedece mais a imposições sociais em que é (des)educada.  Desde o “homem não chora” até “a mulher é o sexo frágil” nos vendem a ilusão condicionada de que devem ser diferenciadas, por gênero, não apenas as falas, mas também sentimentos, funções ou temáticas.  Não acredito numa literatura feminina e outra masculina no estilo dos banheiros de qualquer local público. Desconfio dos preconceitos das proibições de entrada. É possível produzir, sempre que não se fuja a um certo nível de cumplicidade com o sexo oposto e se deixem fluir as sintonias humanas, escritas que não obedeçam à estrita correspondência das gônadas. O artista às vezes é o ventríloquo, às vezes é o boneco ou a boneca que fala.  Não me deixam mentir, entre outras provas, algumas das melhores canções de Chico Buarque de Holanda.

4-Assisti esta leitura no teatro de Arena.O teatro de Arena é conhecido por ter abrigado toda a fala artista de subversão aos ditames de determinada época.Subversivo é o inconsciente que nos habita e vem falar o que não deveria.Tens alguma história com este espaço físico,teatro de Arena, ou com este espaço subjetivo da falar o que não deve?

R – Cheguei ao Brasil em 1971. O Teatro de Arena era ainda uma criança. Rebelde, mas com causa.  A tradição de ser um foco de resistência já era sua marca registrada. Com exceção de esporádicos episódios de censura sofridos ainda no Uruguai, meu prejuízo maior foi como espectador, como ouvinte e leitor impedido de ter acesso aos produtos culturais que a ditadura barrava.  Eu mal engatinhava na língua portuguesa naquela época e, por esse motivo, a minha incipiente produção dispensava as tesouras alheias. Os meus textos eu mesmo censurava. E não sobrava nada. Hoje em dia sou bem mais tolerante e falo o que não devo com a maior das naturalidades.

5-(eheheh )...Vou falar... Falando sério, estamos num trabalho a quatro mãos já faz algum tempo.Um texto erótico em que damos continuidade a dois personagens numa troca amorosa, seus encontros enquanto amantes.Eu nunca havia escrito estas coisas .É a minha primeira vez,deixo claro!( ehehehehehe) É possível que venhamos a publicar...quem sabe!Como está sendo esta experiência para ti?O que mais te encanta nesta experiência?

R –Não era segredo, Adriana? Essa história do WikiLeaks está também pegando no teu blogue? Falando (quase) sério, então.  Não sou, no texto erótico, um marinheiro de primeira viagem, mas sim na construção em parceria. E devo confessar que é bem mais agradável que se virar sozinho, o que não é novidade. Não sei no que vai dar, se é que vai dar um dia, em termos de matéria publicável, mas caminhar contigo na aventura virtual das (des)cobertas tem sido um exercício fascinante.  Sempre que algum artista se equilibra no fio escorregadio da sensualidade, o risco que se corre é o de descambar na gratuidade da pornografia. Considerando que a fronteira entre esse dois terrenos costuma apresentar-se como uma linha sutil e subjetiva, o jeito é relaxar, deixar que o texto flua na criação natural do próprio clima. Isso me dá um prazer que imagino recíproco. Se for pornografia, pelo menos que não seja gratuita. Vamos cobrar por isso, minha amiga.      

6-Quando começamos a troca de emails como amigos me despedi com o simpático: bj.Tu, na mesma hora escreveste:” Adriana, beijo se dá e se escreve com todas as letras!”Isso fez uma marca interessante.Não tenho mais como esquecer disto: beijar e escrever com todas as letras!Tanto que é esta a tua marca neste humilde blogue ( eheheheh).Brinco que se trata de AMOR DE ESCREVER O NOME...É comum situarmos, nos dias de hoje, uma certa abreviação da vida que, não raro, aparece registrado na escrita.Há uma pressa de capturar sabe-se lá o quê.Pois bem...como tu percebes isto?

R – Toda linguagem é, na sua funcionalidade, apenas uma ferramenta de comunicação. Para que essa transmissão de conteúdos aconteça, basta que o emissor e o receptor da mensagem sejam usuários de um código em comum. As línguas se dividem em duas categorias: dinâmicas e mortas. Por isso não sou contra a incorporação de novos termos, o desuso de outros que sofrem de obsolescência ou a alteração dos significados em função de novas exigências. Mas a língua também é identidade (no meu caso, por causa do sotaque, identidade secreta). Faz parte do meu jeito brincar com as palavras e não percebo nisso um desrespeito a uma norma sagrada. Acho que o que me incomoda, no jargão cibernético, é justamente essa presa de abreviar as palavras para dizer mais de algo que às vezes muito pouco interessa.  Já na literatura, pratico e aprecio as narrativas breves, mas teimo em separar joio –ou joias– do trigo, degustação de fast-food literário. Com relação ao bj talvez seja a mais pura implicância. É que a imagem que surge em minha mente, ao topar com essa fórmula, é a de duas dondocas se encontrando numa loja elegante, encostando suas faces e estalando os seus lábios no ar. Isso é bj. O que eu chamo de beijo é outra coisa. Se for isso, dispenso.

7-Falando de...&.Quando li & pela primeira vez achei divertidíssimo.Na minha visão estreita que via teoria em tudo, pensei  no objeto “a” de Lacan como este tal &, representando tão bem.Quando li pela segunda vez, me perdi e pensei nas várias falas do cotidiano, nos detalhes da vida que são as marcas de fato.Quando li pela terceira vez percebi toda a dor da vida, do sexo, do silêncio, da maternidade, da violência...Ainda não li pela quarta vez.Quem sabe o que ainda vem...Concluo, sem concluir, que & é tudo isto e ainda mais.Assim,situo tua escrita como de inscrição.Quero dizer que ela é sempre outra, pronta para desvelar tantos outros eus e palavras que habitam a todos.Por favor ,( eeheheheh) responda-me: o que é & para ti?

R – &  foi o tour de force da minha vida, por motivos diversos que hoje não se aplicariam. Eu vinha de alguns anos de um silêncio provocado pela necessidade de mudança de idioma –identidade incluída- para as minhas escritas, lendo muito e ouvindo mais ainda na pretensão de que a estreia não sofresse dos vícios de um sotaque que me denunciaria.  O saldo de um aurelião despedaçado, que conservo como uma relíquia, é prova de que a luta foi renhida. Ao mesmo tempo, a produção da obra, nos aspectos formais, me exigia um trabalho de artesanato ou de ourivesaria na feitura das fichas de leitura, na mesma quantidade das cartas de um baralho, todas elas com idêntico número de linhas, e ainda um que outro arroubo quase que concretista no verso ou no universo de alguma dessas fichas. A oitava maravilha dos computadores de uso doméstico ainda não existia e a primeira versão de & foi manuscrita, letra de imprensa em folhas quadriculadas, na razão de uma letra por casinha. Todo esse tempo o texto em gestação fermentava e adquiria novas significâncias, camadas palimpsestas que o leitor mais atento desvenda nas leituras sucessivas, ou que ele mesmo cria.  Não sei se vale a pena procurar dentro de & os ecos mais umbertos da obra aberta ou o lacaniano objeto das ausências. Gosto de imaginar que o conteúdo da caixinha de & é um espelho. Mas certamente isso é pretensão minha.   

8-Jorge, quais os trabalhos que podes citar que te trouxeram grande prazer em fazer?

R – É mais comum o alívio, a sensação de um peso que transfiro, a expulsão dos fantasmas dos porões, algo que me liberta. De prazer mesmo essa louca aventura que estamos cometendo e um história infantil que escrevi em homenagem à minha neta.

9-É verdade que depois de & me autorizei a fazer poesia .Tenho teu texto como sendo poesia, embora te digas “ dramaturgo”.O que é arte?O que é poesia?

R – Eu sou muito inconstante. Sempre ando apaixonado por alguma nova definição de arte com a qual tropecei no meio do caminho, como se fosse pedra.  Aí vai a mais recente: “Quando algo corrompe a natureza da acomodação e sacode nossa falha razão, estamos diante da Arte”. É de Adriana Bandeira. A poesia, por sua vez, é o resumo da ópera. É ela que sustenta não só a literatura, também todas as outras formas de expressão artística. É só ela que autoriza sintonias de fruição, de emoção, de partilha, de um ser e de um sentir inexplicáveis. Raramente elaboro um poema formal. Não estou me referindo a uma questão de ritmos, melodias, rimas ou métricas, mas ao sentido estrito de um formato peculiar da mancha gráfica impressa na página. Ao mesmo tempo, suponho que há poesia em tudo o que eu escrevo. Ou é isso que almejo.

10-Voltando ao primeiro café juntos... surpreendeu-me tua resistência: “ não quero te conhecer”, foi o que me disseste!Falamos em troca de sobrenomes, em troca de livros...pois bem, como sentes esta questão do “ conhecer o outro”?

R – Realmente fica um pouco difícil convencer alguém a não levar uma declaração dessas para o lado pessoal. Na verdade, pretendia ser um elogio ao teu trabalho como escritora. Quando a obra de um artista me impressiona, é aí que não faço questão de conhecer o criador pessoalmente. É uma espécie de fobia solidamente sustentada em experiências prévias de desastrosas decepções. Não adianta me torturar, que não vou citar nomes. Acredito que ficou suficientemente claro, na continuidade da nossa amizade, que foste uma das raras exceções que confirmam a regra. Não me arrependo de ter te conhecido. Agora que provei, eu quero é mais.    

11-Gostaria de deixar registrada mais alguma coisa?

R –  Acho que me excedi nessa tendência à verborragia. Ficou longa a entrevista. Te autorizo a cortar o que achares demais. Beijo sim, bj não!
Agradeço pela  verdade esculpida,denúncia contida,pelo amor que fez nascer em mim ;por estar conversando conosco, por aqui.E...queremos saber quando vens com Alice para conhecer nossa Estação da Cultura!
R – Logo no primeiro trem.
Beijo com todas as letras!
Jorge Rein é dramatugo,escritor.Vencedor de alguns prêmios pelo seus textos encenados.

Ensaio sobre o amor - I

                                 
                                                                                 I
                                                           

    E vai invadindo, invadindo... me indo feito luz que cega.É o sol que nasce para sempre.E há de fazer imagem onde o rastro desenha.A escuridão é das aparências.
    Não lembro perfeito!É o que some e vem, dia inteiro.Verão apadrinhado em pleno inverno,destas distâncias entre frios e ares quentes.
    Corria inquieta.Anunciada pela primeira descida.Bicicleta!Primeira e única fresta que me fazia curvada. Não poderia abrir o peito e abraçar o vento. Ele, nos últimos tempos, roçava pequenos botões nascidos impunes e sem medo. Meus primeiros seios.
    Ar da descida, vergonha escondida, movimento em contração. Corpo rolando: rua, calçada,vão,chão!
    E lá vinha ele a me socorrer como se eu fosse menina, a me juntar do vento.Inocente? Mãos de susto no ventre: machucou-se? Ferida de morte.O homem desconhecido seguiu sem pressa e me deixou suas mãos. Tatuadas!
    É o tempo das estações...tudo e nada.

                           

O nome

                                                             
 Eu queria mesmo o pontilhão... que em dia de chuva atravessar arroio com bota, enche de água ,que rumina o frio até os ossos.Ah!O pontilhão!Ainda no tempo da professora, que botava jeito nos que não queriam atravessava às pressas, a largura do rio que tomava o inverno. Êta que a gente se esquentava na pinga de fora, trazida em garrafão. Ela nem se importava... Por vezes vi nos olhos uma festa, enchendo a boca de delícia, se fosse  tomar.
Era bonita e bem feita. Dizia das palavras qualquer coisa que me abrisse a pensar. Começou com o nome. Não só o meu, não!O de todo o mundo. Mas o meu nome, para ela, era especial.Dizia com as mãos,quando pegava na minha, escrevendo um A grande,como caverna para a gente se encontrar.
Eu pensava estas coisas... que vergonheza! Mas que eu pensava não posso me safar. E ela, enrolando, falando com as mãos, olhos, boca e peitos.Conseguia perceber sua respiração.Levantava e abaixava no vestido, a quentura de colo na palavra Antônio.Era meu nome...meu nome...
Acostumei a atravessar o tal arroio, de pé no chão para não molhar as botas. Um dia ela vendo riu-se finada do meu cuidado.Foi aí que falou,quis  saber do pontilhão.Vai que tem jeito,dizia ela, de construírem um?
Pensei, repensei e na minha idéia nunca tinha ouvido falar em algo assim, que unisse as pontas,os lados distantes pelo desejo de se juntar.
Ah!Mas eu queria!Digo, saber mais dela, dos cabelos dela,de como respirava quando era verão.Mas quieto, que não sou louco de assustar a moça e dizer que eu saberia a media exata de seus peitos.Quantas vezes estive com eles no pensamento da mão?
Tem sim!Mão tem pensamento que foi com ele, dela, que aprendi a escrever meu nome,depois de homem feito.Apesar da casca da árvore já ter riscado a pele,saberia dizer o tamanho exato do coração dela.
Ah!Não sei! O nome?O meu é Antônio, para sua graça. Por isto vim, para falar do pontilhão. Ali para os lados das linhas de leite,onde o arroio da Santinha corta a fazendo do patrão,o Luís Quinta.
O nome do quê?Dela?Não perguntei, não perguntei. O que importa, não? Só vim para saber se o prefeito sabe fazer pontilhão, destes que junta dois lados, duas terras, os olhos de lá com os de cá...destes que faz nascer cantoria e professora,que reúne a turma quando está frio.
O quê?Ah!O nome disto... olha amigo,o nome disto que sinto...acho que é amor.É amor grande,destes de escrever o nome!

Adriana Bandeira

Obediência

Sai daí que te machuca! A vida mansa na cadeira de praia? Na água que não, na praça que não,viagem de espadas Sai daí menino! ...Que a vida já não é nada! Corre e entrega o bagulho que pé é chão.Carrega direito, que te escondo no meio do capim.Nem assim, nem ai.Obedece,menino, o patrão do pai.

Febre

Febre é toda a fala que a palavra não pôde dizer.

sábado, dezembro 18, 2010

O segredo

Toda ostra desenha sua pérola num segredo de casca.Não deixa de contê-la, nem deixa de mostrá-la.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Falando sério com Diego K


1-Qual a tua primeira lembrança acerca deste interesse pelas artes visuais?
5 ou 6 anos, no "jardim de infância". Em uma semana, fiz o mesmo desenho todos os dias: uma casa e um pássaro com uma flor no bico. O primeiro desenho começava com o pássaro à esquerda da página. Nos desenhos seguintes, ele foi "voando pela folha" até chegar à direita. Acredito ter sido minha primeira noção de animação.

 2-Comentava contigo a respeito de autoria. Percebe-se que tu és um homem “ mordido” pelo teu trabalho.Quero dizer que o que fazes está estranhado em ti, que o que produzes tem autoria, tem a tua marca.Pois bem...Concordas comigo?Como percebes a tua autoria naquilo que compõe um trabalho?
Sim. O que eu faço geralmente envereda pelo fantasioso, pelo lúdico. Talvez seja um protesto à sermos "só isso que somos". Ou vestígios da pureza da infância que resistem ao tempo. Ainda não cheguei a uma conclusão se os trabalhos que faço são prisão ou liberdade. Prisão porque sem os trabalhos não sei se teria um "eu". Existe um Diego que não está associado ao eu trabalho? Consigo acordar amanhã e dizer: "Hoje vou largar tudo e virar agricultor"? Liberdade porque cada trabalho novo vem com uma pergunta que desfaz as respostas prontas até então.

3-Por que Diego Ka?
Na condição de homem mordido, mordi meu sobrenome =D

4-A primeira vez que tive contato com tuas idéias foi na criação da capa do Chá das Cinco.Percebi que me perguntaste sobre algumas coisas, sobre algo do texto, algumas palavras chaves e, de pronto, compuseste a belíssima capa do livro.Pois é...o que move teu trabalho de criação?As cores, as palavras, percepções?
Penso que todo trabalho criativo verdadeiro é espontâneo. Até tenho dúvidas se o artista é realmente dono do seu trabalho, visto que sua imaginação entrega o caminho pronto. Michelângelo exemplificou bem: "A figura já está na pedra, trata-se de arrancá-la para fora". Procuro manter a imaginação bem nutrida: ao invés de olhar reto e objetivo pras coisas, me perco nas percepções periféricas. Depois, as perguntas e palavras-chaves  apontam a direção, e a imaginação dá a resposta. Nesse cenário, sou apenas a ferramenta.



5-Quais as coisas mais importantes para ti?
Não vivi o suficiente pra definir o que é realmente importante, ou descobrir, ou me conformar. A importância das coisas é volátil e efêmera. Um grande amor pode tornar-se uma pálida lembrança. Uma profissão pode resultar na confissão de que não faz mais sentido. De todas as coisas, perguntar e ter dúvidas parece a mais importante no momento. Verdades e caminhos prontos hermeticamente fechados em palavras e entidades absolutas aborrecem e emburrecem. Atualmente considero importante a transformação, valorizo e prezo a transformação. E quando encontro respostas pras coisas, me pergunto se não estou ficando ignorante.
 6-Quais as principais dificuldades de Diego Ka?
Algumas vezes, carecer da técnica necessária para realizar determinado trabalho que foi imaginado.  Ter o domínio da técnica para concretizar a imaginação com esmero é um ato de respeito a si mesmo.
7-Num texto teu que eu li, escreves sobre as diferenças. Fala em cores, em pensamentos, neste abismo que é próprio ao ser humano: o que sinto,vejo ou falo não determina como o outro vê, escuta ou fala.Pois é...percebe-se uma certa ética a respeito do cuidado com o outro. Como lidas com isto já que trabalhas com imagens e criação e sempre estas coisas estarão alheias ao que, de fato, imaginamos?
Não faço coisas pensando no que os outros irão pensar, porque não sou "os outros". Não tenho a carga de memórias e emoções deles pra ficar delimitando "isso é bom"  e "isso não é bom". Tenho apenas a minha carga de memórias e emoções. Embora o trabalho de criação seja egoísta, a percepção é coletiva. O que procuro é respeitar e atender ou superar a expectativa coletiva no tocante satisfação, geralmente com temáticas benignas, emotivas, belas. O meu norte vem de símbolos universais (um sorriso é um sorriso e uma coisa boa em qualquer lugar do planeta) e percepções de massa (você pode realmente odiar rap e amar Beethoven, embora outras pessoas adorem rap; mas um rapper pode dizer com sinceridade "Beethoven é a pior coisa que já escutei, isso fere meus ouvidos"?)

8-Quais os trabalhos teus ou em parceria que poderias citar ?
Sempre gostei muito dos trabalhos de computação gráfica, como as aberturas de programas produzidas para a TV Cultura de Montenegro desde sua inauguração, e a TV Mais de Novo Hamburgo. Algumas ilustrações renderam um espacinho na memória, como uma campanha pra Gasoline (marca de roupa) e outra pra Souza Cruz, com pinturas a óleo de animais. Na produção de vídeo, um que teve um resultado bem satisfatório foi o 2º Caderno Pedagógico, para a Fundarte. Algumas capas de livro também foram divertidas de fazer, como a tua (Chá das 5), do Carlos Leser (In Extremis) e do Pedro Stiehl (Rapsódia em Berlin). Nem sei se eu posso falar isso, mas a mão que aparece na capa do livro do Stiehl é do Mister, que freqüentava o Café Comercial.  Eu falei pro Ângelo (Daudt, fotógrafo): "Cara, preciso duma mão, LITERALMENTE" heheh e ele me veio com essa.
9-Quer deixar registrada alguma coisa mais?
Virou Cartório agora pra ficar registrando coisas? hehehe
Agradeço muitíssimo tua entrevista. É de fato um prazer teres aceito ser meu convidado. Andiamo,Diego.Andiamo!Mas...cartório não combina muito comigo,não.Registro de palavra,sim!Que a gente escreve para repartir.Como as tuas...belíssimas.
Beijo com todas as letras

Além mar

E além mar se faz imagem.É da falta toda a verdade, sobre palavra inventada.Respiro algumas coisas que deixei de usar.Teu nome...deixei de dizer.O mar reparte em barco uma lembrança que ao acaso, quem sabe, nem conheço.Ainda lembras que falo italiano?Tenho nas mãos teu suor encanto, que ainda vou segurar.

Balões

Em todo balão existe uma criança.Talvez pela leveza das sombras, numa possibilidade sem fim de céu.Talvez em todas as crianças existam balões coloridos que, durante a noite, sonham.

cobertor de orelha

Fecha os olhos...sussurra a voz gemido.Durmo rouca e nua aos pés do teu ouvido.

Estréia do grupo Válvula de Escape

   

Sobre a estréia de “ O Assovio No Vento Escuro”-grupo Escape de teatro

                                                                                                                                      Adriana Bandeira

O Grupo Escape de teatro estréia a peça “Assovio no Vento escuro” trazendo o texto de Clarice Lispector à expressão melhor da dramaturgia.O texto escolhido “ A hora da estrela” é resistente a encenação pela riqueza de frases, de textura própria da autora.Porém, o grupo veste esta roupagem e faz disto o fio próprio de seu tecer. Parto desta constatação ao vislumbrar  nos artistas, direção,figurino,técnica,trilha sonora,enfim nas cenas que nos fizeram transgredir em espaços subjetivos íntimos e próprios, a falta de objeto a ser dado como já construído.O texto, cenas e interpretação são um convite para que cada um construa suas palavras,deixando vir a tona a alma, como Clarice o fez.Quando algo corrompe a natureza da acomodação e sacode nossa falha razão, estamos diante da Arte.
É desta forma que apresento três aspectos desta vivência: a temporalidade, a palavra e a sexualidade.
Prometo dizer-me de forma contextualizada; prometo dizer-me de forma rápida; prometo dizer-me...um dia, quando este assovio passar!Pois é...acredito que é esta a questão.O que hoje situo como temporalidade ,no contexto desta vivência, poderá ser refeito sempre,numa construção contínua de inscrição.Para além disto existem momentos interessantes que apresentam este tempo também como espaço.São os momentos do assovio silencioso e eles estão em cena sempre.
Clarice é interrompida pelo personagem que a toma. Ora!Ela mesma diz: não fui eu que a inventei... Ela veio a mim!Sim!São as palavras, no seu tempo, que invadem Clarice num ritmo incessante de respiração. Ela, na exterioridade do vento, das nuvens e das crianças acaba por ser encurralada num tempo diferente: o da escrita. É a primeira parte, ainda no pátio da Estação da Cultura, onde somos convidados a adentrar ao subterrâneo da construção, ao úmido beco da indignação, de onde não retornaremos iguais. Nesta visita, a temporalidade da arquitetura, na descoberta da frase pura que retrata o que sustenta a antiga espera dos trens.A estação, o tempo...é da palavra.
É com a menina que fala, a menina dela mesma ,com quem dialoga sobre o futuro.Em todos os momentos de ternura ,curiosidade, vida, enfim, é a menina Maca que ali está.Este duplo do eu que transforma-se em outros tantos, nos mostra a verdade acerca destas questões que nos habitam.Ali,a menina de quem não consegue se desvencilhar,aquela que já sabia,pelo que lhe antecedeu na sua história, que haveria de vingar a vida crua, nos aponta a verdade sobre o tempo.E como se vinga a vida crua?
As cartas não mentem jamais. Hão de guardar em forma e cor o destino inscrito num rosto sem encanto algum. Uma falha de momentos trocados em que o cômico invade a cena no doce infortúnio da cartomante que recebe a todos, desde o início.O futuro recebe a todos, sempre.
É neste caminhar entre as cenas que se descobre ainda o convite incessante para que se vá mais fundo numa temporalidade que acaba, somente, quando a morte vem. Mas o assovio...continua.É o tempo da respiração, desde o início, a querer mais e mais...palavra.Talvez porque para Clarice respirar e escrever fosse a mesma coisa.
O texto é denso e leve, falado e lido naquilo que a leitura de fato oferece: a invenção. As palavras da escritora são transcritas, reinventadas no jogo de luz, sons, interpretação e tempo.
De fato, a angústia da criação deixa a mostra a nudez de todos que ali estão. Não há como não inventar palavras enquanto estamos na cena. E estamos todos na cena com Macabea,Clarice,Olimpio,escrita,Glória,músico,menina,morte,cartomante,futuro,solidão.Não saímos impunes.O grupo nos oferece esta condição.
A sexualidade e a morte, na mesma moeda: cara ou coroa. A menina da boneca, a mulher da feiúra, a sensualidade da outra, a solidão da prostituta.
Clarice escreve como se fosse um homem, no texto. Talvez porque para ela, somente um homem pudesse dosar sua textura fálica a ponto de limitar numa frase ou palavra, num dito ou expressão, todo o gozo  de morte que há na não existência.Talvez porque somente o masculino possa apresentar o que é do feminino; talvez somente ele possa dizer quem é ela.
Na transcrição do grupo  a sexualidade faz seguir “O tempo”,voz em assovio que pega pela mão a mulher Clarice e a conduz na sua nudez .É a cena que se veste de toda a feminilidade possível, guardada pelo masculino que faz casa no prazer da expressão da palavra.Ali é ela quem diz sobre um ele.O grupo libera Clarice para que fale, na voz da atriz.
Saímos estarrecidos desta estréia!As cenas apontam em cada um o gozo de por tantas vezes não estarmos em reconhecimento como sendo um ele ou ela; como não existir, não ocupar espaço, não ter peso e nem rosto. Estas formas em que nos escondemos, que por vezes fazem com que sejamos Macabea, num dia a dia em que não enunciamos nada que diga respeito a nós mesmos.É quando, desde o início até o final,Clarice pergunta: porque morrer?
Duplo estarrecimento, para mim, já no início. É Clarice que aponta a diferença antes de descer a escada.Quer saber como escrever sem ser “ lacrimejante”...que por ser mulher, quem sabe, tudo o que diz seja desta ordem.Fala-nos, secretamente,deste choro universal a que todos somos submetidos, vez ou outra.Pois bem...é isto.É comum acolhermos um autor ou uma autora de forma diferente, num entendimento de que as mulheres que escrevem soam melosas e os homens que escrevem, dizem coisas importantes.A voz ... somos. O masculino e o feminino encantados em todo o corpo e fala que deseja viver.Porque morrer? Pelo instante... pelo instante se quer morrer.
Parabenizo a todos da cena, principalmente os artistas que representaram esta expressão de um si mesmo. Parabenizo Rosani, coordenadora do espaço da Estação da Cultura, pelo acolhimento ao grupo, cedendo o “subterrâneo” que fez composição com a palavra,o tempo e o afeto.Enfim, parabenizo a mim mesma por ter estado na estréia, por ter estado no meio de tudo, numa emoção estranha de, pelo instante, imaginar dividir palavras com Clarice.
Aguardo mais desta vivência e prossigo no que ainda não sei responder: porque escrever?
Aguardo muito mais deste grupo que estréia para fazer valer.

Sobre a estréia do grupo ESCAPE: “Assovio no vento escuro”
Adriana Bandeira
11-12-2010