quinta-feira, janeiro 13, 2011

Para que serve um livro?- discussão no blog de Pedro Stiehl sobre " o livro com os dias contados"

  
É a pergunta que me faço diante de crianças que não sabem a diferença entre o ficcional e a realidade; é a denúncia que vem veloz numa dúvida: estaríamos diante de alguma mutação psíquica? Diante de alguma diferença mais do que significativa que transforma gente em algo que ainda não tem nome?
Para longe de diagnósticos, reparto esta consciência de que há uma fala nisso, levando em conta o número de crianças, e mesmo adultos, que percebem o mundo assim; uma fala do social que aponta esta forma diferenciada de conceber a existência.
São destas vivências que me sirvo para dizer que nem mal nem bem, as coisas estão mudando. Há muito tempo! Desde que o tempo é tempo, desde que...
 Digo nem mal nem bem porque não é admissível que ainda estejamos grudados na fórmula já erguida quando somos invadidos dia a dia pela voz do Outro que anuncia uma diferença. Mas qual? Esta é a questão!
Noutro dia me perguntaram: para que serve ler? Não me surpreendi, não era o lugar para isto. Escutei. A cada vez ainda retorna: para quê mesmo?
Nesta reflexão me fiz valer da cegueira de Homero, da invenção do alfabeto, da retenção dos saberes escritos pela religião e, digo-lhes... nada respondeu a tal perguntinha. Porém, de todas estas pequenas viagens trouxe na mala uma lembrança, uma reminiscência farta de particularidades: lembro-me dos trens que atravessavam nossa cidade e do quanto ler a tal placa “parar, olhar, escutar” servia-me de norte sobre o que eu não elaborava muito bem. É que o tal trem sempre é visto num traço único de velocidade que logo termina, assim como veio. Isso é difícil! O som...Ah!O som é para sempre.
Ocorre que um registro escrito está morto. Parar, olhar, escutar estava sem vida. A leitora é que fazia a placa falar!É o que dizem muitos escritores sobre seus textos enviados para as editoras: “prá mim morreu”! Um registro passa a ter vida somente quando lido, articulado, enunciado num tom próprio, pela necessidade humana de receber a palavra do outro, a nomeação de si e das coisas do mundo. É a invenção do ficcional, do espelho: onde me vejo não estou; na leitura há sempre dois: o eu e a voz de si.
 Neste sentido a transmissão é sempre oral, a verdade de Homero. Ah, sim!A transmissão é oral mas a palavra primeira é  registro latente, como os rabiscos feitos nas cavernas, como o texto inconsciente que passa a ser tecido desde o nascimento e é único. A verdade da linguagem é que ela existe enquanto potência de escrita.
 Contudo, a dificuldade desta inscrição aparece nesta impossibilidade de fazer viver um texto outro porque há uma dificuldade de fazer viver o próprio. Ali, não há reconhecimento da necessidade de receber a nomeação. Indo mais fundo... não há um si mesmo. A leitura deixa de ter função e, antes de ser somente um índice de analfabetismo ( que até vem diminuindo), precisamos perguntar: o que é SER alfabetizado?
Quando vislumbramos uma obra de arte, a assinatura não se encontra no nome somente, mas no estilo. A autoria está na marca do pincel, se estamos falando em artes plásticas; ou no traço (mesmo eletrônico) do personagem; nas pausas, no ritmo de escrita, se estamos falando em literatura... Enfim! É quando argumento que o traço é mais do que um registro gráfico, como a sílaba tônica nem sempre é acentuada. Traço, que me perdoem alguns, é o que se transmite para que continue, a falta que convida o outro a ler e reescrever, a acrescentar, como o desejo de que viva para além de hoje.Talvez saber ler e escrever tenha esta peculiaridade.
Os livros digitais se encaixam perfeitamente numa espécie de novo brinquedo para aumentar tamanho de letra, fazer mexer uns bonequinhos, responder coisinhas óbvias (como se isto fosse interagir!). O excesso de imagem subtrai a palavra e tampona a que surgiria como invenção, criação. É o entretenimento e suas vicissitudes que se encarrega de deixar “atrapado” um certo saber de si. Aqui o livro serviria para...?
Porém, a mudança fatal não diz respeito a esta nova maneira de mostrar um texto mas, antes disto, na representação psíquica deste registro; nesta variação com o objeto ESCRITURA, ou melhor, com a escrita. As formas variadas de mostrar a literatura são valorosas modificações que apresentam escolhas e, no meu ponto de vista, quantas mais se fizerem... melhor!
O livro não sendo mais do seu jeitinho, deixa de transmitir esta forma de amor pelo outro? Não creio. Porém, deixar de amar é estar impossibilitado de receber a transmissão de humanidade, é não poder ler com sua própria voz, é também não receber estas formas diferentes de registro de textos, é uma certa obediência vigente que exige morrer para si mesmo e para os outros. Pois é, pois é... Acho que a questão é este “embotamento” na transmissão de um dom. Mas, afinal: o que é transmitir o dom, a falta?
Adriana Bandeira
Dezembro de 2010

2 comentários:

  1. Claro que Proust, quando escreveu um ensaio sobre a importância da leitura, não imaginava que um dia viveríamos essa (h)era digital. Mas, ele já dizia que as melhores lembranças da nossa infância, vem dos livros que lemos. Da mesma forma que o rádio não acabou com o jornal e que a tv não acabou com o rádio, a internet e a era digital deverão imprimir processos contínuos de qualidade gráfica. Aliás, temos testemunhado isso.
    Taí um bom debate... rsrsrs
    Um abraço!

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  2. Oi Lau
    sim um debate e tanto.As formas variadas , no meu entendimento, só acrescentam.falo de uma outra mudança, a da relação do ser com sua condição.Isso é um tanto preocupante.
    Bem vindo ao blog.Volte sempre
    beijo grande
    adriana bandeira

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