quarta-feira, março 30, 2011

O DIA DE HELENA - CONTOS



                                          
                       
                                                       
Bastava um dia! Que nele as horas tivessem gosto e tarde fosse o anoitecer. Umas de prazer, delícia do sei lá o quê. Pelo encanto, que fosse para sempre este instante, mesmo que durasse um dia. Espanto.
         O táxi ainda parado, resmungos, Êta, homenzinho difícil. Olha pelo retrovisor, Espera pelo quê? Respiração. Dá partida num ronco de sono. Ainda bem!
         Carro sofrendo de mil pecados, estofamentos sem cheiro de solidão. A limpeza é solitária, nos finais dos dias, nas ruas paradas. Quando o táxi é sujo sempre penso assim: homem sozinho não faz verão. Pois este com tristeza,  embaraço, desaposento. Ah, o carro com esta falta de preparativos, sempre gostei disto! Clientela sem lugar. Reforço o olhar pelo espelhinho. E então? Arranca devagar.
         Olhos de paciência, negros de lente de sol. Tateiam meu vestido, coberto de verão. Enxergo a segunda visão, a que me espia enquanto ele segura o volante. Na tentativa de estar em dois lugares ao mesmo tempo, silêncio de televisão. Acalmo meus braços que limpam a janela de trás. É que a cidade me encarnou. Porto Alegre sempre foi de meus sonhos. Caberia no meu dia, se viesse a ter.
         Volto a balançar pelas ruas num encontro qualquer. Queria retornar nesta cidade, nascer novamente na avenida principal. Seria meu dia de festa, estar em meu nascimento. Tristeza, hoje não posso nascer. Nunca pude antes de escurecer. O cansaço, levantar cedo, restrições.
         As visitas são nos finais de semana.O pai hospitalizado, diminuindo em cima da cama. Levo maçãs e bolachas. Gostaria de voltar sem que fosse assim, tão doente minha urgência. Sou paciente.           
Mas não é isto que incomoda. Não! O que me parte em duas é o retrovisor com sua miragem em cores novas. O homenzinho abaixa o escuro, dói o temporal. Mira, sem respeito, alguns meus pensamentos. Assédio, pela invasão de meus sonhos.
         Ele desconfia, tenho certeza. Ele sabe que espero um dia. Respeito. Exijo mais isto além da corrida em bandeira dois. Tão caro, não? Pergunto pálida, sem saber sobre o depois. Ele responde, não responde. Uma voz grave faz rasgão na música: tão domingo, não? Quieta. Já fiz minha partezinha. Posso pensar no meu dia! O dia de Helena! Mas o pai não deixa. Na última visita ficou chorando sem lágrima. Mal de Alkzheimer. Petro! Petro! Ele gritava, segurando minha mão. Consegui dizer algumas coisas, sem coração. Assim não, pai! Assim não! Ensinava a pequena criatura a não limpar o nariz com as mãos.
         Para falar é preciso não ter dó, nem piedade. Não ter início nem conformidades. A palavra sempre é dura, mesmo no mais delicado tom. Compondo lugares, crueza da discrição. Quem seria Petro?
         Nariz de Pinóquio, no hospital. Digo que quero, que volto logo. Não obedeço, sobre não mentir. Do pai, as mãos me seguravam lá nas ondas do mar. Barco que nunca virou, verdades sobre me afogar. O ar da rua entra em golfadas, naquilo que as avenidas disparam, oração das calçadas. Aquele mal estar crescente, cheiro de impaciência. O moço me olha sem vergonha, peito aberto no calor dos quarenta. Graus e anos a colher tostões. Ainda penso no dia do sofá, da folhagem ou da esquina. No dia destes pensamentos soltos, das horas vazias. Por aqui, riachos. Guaíba notícias e buracos de antes. Braços em pêlos sobre a direção da via.
         Há uma confissão importante a fazer, isto de matar ou morrer. E sempre se morre, aos dias, e sempre se mata na insensatez. Morrer é não e ,embora eu sim, sim, sim,... ainda me espera o final.
 Antes acreditava que eu para sempre, sim! Que pelo menos uma viveria no nunca mais. Hoje, reparos.
         O cinzeiro vazio, as luzes do domingo cristão. Os olhos na estrada seguem sem pudor algum. Andam e andam, sem velocidade perceptível.
         Sou. Transição.
         Quero a que me parte em duas. A verdade nunca foi meu ato bom. Pai, deixe-me ir, nunca mais voltar! Também vou morrer, em algum tempo e lugar.
         O táxi segue. Ainda a música canta minha cega condição. Quero um certo respeito que não tem mais nenhum chão. Julgo as aparências e os olhos do espelho acham meus tons. O estranho é que são de pedido, muito mais do que de pretensão. Para falar, para dançar, para intrometer-se naquilo que não divido com ninguém, meu dia principal.
         Digo solta: que rua é esta? Ele responde em amor de gesto. Desliga o rádio, pede socorro inquieto. Vejo que segura palavras, como se pudesse ferir. O silêncio dá voltas e percebo que nada lhe disse sobre o destino. Respondo sozinha sobre minhas riquezas, rotinas. Para onde vamos? Neste hoje, seguir estradas. A chuva molha a rua, despreparada.
 Sou passageira, mais nada.

 adriana bandeira

Nenhum comentário:

Postar um comentário