ENTRE COBERTORES E FALAS
Adriana- A tua poesia faz-me não pensar. É como se a razão sumisse estilhaçada.Todas as que leio, ultimamente.Acho que alguns textos estabelecem este tipo de relação com seu leitor.É a cada vez.Por exemplo, amo o texto " O cavaleiro Inexistente" de Ítalo Calvino.Mas não amo todos os textos de Calvino.Isso vai contra o que se diz sobre o estilo, ou seja, seria mais provável encantar-se com uma forma de escrita do que com o texto a cada vez.São os amanhãs, é o mais um, neste sentido como únicos e estabelecidos num tempo, o da escrita do poeta e o da leitura do leitor...o que achas,Antônio?
Antônio- Parece-me natural que o poeta vá procurando novos processos de escrita e de pensamento. Os meus poemas, em tempos, mudavam muito sob o ponto de vista estrutural e estético, conforme o tema. Isso tem tendência para acabar em mim, julgo eu, mas conheço casos de poetas com nome firme na praça que mantêm essa tendência, como sendo um cunho seu. No caso particular de Calvino não te sei dizer, apenas conheço “As Cidades Invisíveis”, que é mais uma leitura minha, de entre algumas muito desorganizadas que vou mantendo, de forma que não o li todo, ainda. No entanto considero-o um livro de poesia e confesso que o tema da cidade me atrai muito. Acho muito natural, que haja casos em que só ocasionalmente, o tempo do leitor se cruze com o do escritor ou poeta. Eu próprio, como leitor, conheço um exemplo ou outro assim.
Seguindo o teu pensamento, o amanhã do leitor também existe, isso não merece qualquer dúvida, e se um poeta procura comunicar e dessa forma ir ao encontro do leitor, é natural que quando o poema sai para a rua o leitor já lá não esteja. O poema também procura o leitor, tal como o leitor, o poema.
Lembremos Garcia Lorca, que tomou o caminho do surrealismo, também porque todos à sua volta o faziam, e ele, se o não fizesse ficava para trás.
Falas que, na minha poesia, é como se a razão estivesse estilhaçada. É verdade que me sirvo da poesia, em muitos casos, para procurar a razão ou a realidade onde o meu corpo caiba, Em quase todos os poemas que faço, mesmo não sendo esse o tema, há-de existir sempre uma frase, um verso que espelha essa procura. É uma forma de eu a procurar, evitando queixar-me e de falar o menos possível de mim. Sou eu a reconstruir o rosto interrompido, a procurar o mistério das coisas e as coisas de mistério que perdi pelo caminho. É um exercício interessante, esse de procurar as coisas e as cenas que trazem com elas mistério profundo. É algo em que podemos pensar mesmo sem escrever. Temos que procurar nas cenas do dia a dia ou nas nossas memórias mais profundas. Para mim é uma teima, isso de fazer do poema um lugar de mistério, é como se tentasse recuperar tempo perdido. Mas só os grandes poetas são capazes disso, eu apenas ocasionalmente o consigo. Dava um bom tema de conversa, se conseguíssemos falar dele sem ser através da poesia.
Beijos, Adriana.
Adriana- Hummm... O tempo perdido...'No Caminho de Swann"...Mas qual o tempo que não é enquanto perdido?Talvez exista um que na sua repetição consagre o indizível como zona neutra.Gosto de uma expressão minha que é " que não passa sem parar" ou "Não para sem passar".Sei que isso diz respeito a experiência com a psicanálise e este tal inconsciente atemporal.Penso a poesia como algo que não traz nenhuma palavra nova.Apenas uma forma diferente de dizer algo do Universal.Realmente tua poesia tem esta marca de ser outra a cada vez.Como na série sobre Nova Iorque...Ali é outro a dizer algo.
A cidade é universal e é imaginária,de cada um.Deste lugar viemos...Como descreverias este tempo em que ainda não poetavas?Quero dizer...cresceste onde?De onde vem teu tempo?(eheheheheh)...
Antônio- Sim, tens razão, todo o tempo é perdido, mas eu acredito que de tempos a tempos os ciclos de vida, naturais ou provocados, nos farão com que nos reencontremos, como um rio sobre o qual voltamos a passar. É essa ideia que procuro explicar no meu poema “Aveiro Revisitada” que poderás ler na etiqueta “cidade”, no meu blog. Há realmente coisas que não passam sem parar. E uma simples visita a Aveiro, na qual passei bons momentos na infância, com os meus avós, fez-me apanhar-me a mim próprio de uma forma que não conseguiria sem visitar essa cidade. Há um poema de António Gregório, português, que também poderás ler no meu blog, em que ele fala que o Universo se está a expandir, mas mais tarde recebe a notícia que, tal como se expande, um dia há-de contrair-se. Penso que este poema também fala disso.
A universalidade, em poesia, é uma coisa relativa. Por vezes, sendo universal, ela apenas representa um pequeno período da nossa vida e se lhe podemos chamar universal é porque procura uma verdade, em se tratando de boa poesia. Aliás, não sei se a poesia não é um grande engano, tal como a realidade que, existindo, é a de cada um.
A série sobre Nova Iorque é especial. Foram leituras que fiz de fotografias dos arquivos do MoMA e consegui uma economia de palavras que não repetirei, não querendo dizer com isto que nada tirarei dessa experiência, antes pelo contrário, aprendi bastante. É novamente o interesse pelo tema da cidade.
É como dizes, a cidade é também imaginária, podendo ser longínqua e desconhecida, como foi o caso de Nova Iorque, ou podendo ser um lugar pertencente ao nosso crescimento e, é claro, ao imaginário e aos sonhos e desilusões que nela vivemos. Não querendo exceder-me em exemplos da minha poesia, se leres o “Poema da Cidade Distante”, lá encontrarás quatro cidades: duas reais e duas imaginárias, descritas sobre os lugares de Lisboa e Coimbra.
Eu tenho algumas dificuldades em falar do meu crescimento, principalmente da adolescência, peço que me desculpes sobre isso. A primeira publicação que fiz de poemas meus, no caso dois textos, foi aos vinte e um anos num anuário de poesia de autores não publicados que a editora Assírio & Alvim lançava por esses anos. Mas cedo passei a não gostar desses dois poemas e de qualquer coisa que escrevesse. De forma que deitei tudo fora, não se perdeu nada de bom, e parei de escrever. Só voltei a escrever em 2003, penso eu, gostando do que escrevia o bastante para o guardar. A razão para isso é um lugar de dor para o qual não estou preparado para falar, mas que se estiveres atenta, aos poucos vou deixando pistas como que deixa cair migalhas do pão que come
Abraços para ti.
Adri- Sim...recebo tuas migalhas e percebo...tu recebes as minhas( eheheheheh).Sobre o que já falamos e mesmo que não seja igual...são nossas migalhas.É o que somos,não?Somos o que restamos.Mas, de fato, penso na poesia como instância da verdade.Nem tanto pelo que relata mas pelos significantes que assombram o leitor, propondo que este faça algo com o que lê.E digo, com todas as letras,o leitor também é o que escreve.Afinal, lemos algo que nos vem, colocando isso num papel ou tela...numa palavra, para ser mais precisa.A verdade, neste sentido, não tem tempo algum, por ser este assombro, estalo, este gosto que escapa a cada vez.O gosto que se perdeu e " revisitamos".Tenho pavor de ler meu texto,depois que pensei estar pronto.Não gosto de revisitar o que não é um novo gosto, ou seja, outra criação.Neste sentido, achas que lidamos com uma espécie de morte?Digo, a palavra seria uma forma de inscrição de morte?
Antônio- A palavra é uma forma de morte. Eucanaã Ferraz diz que é defeito, Eugénio de Andrade dizia que é o real. Eu digo que é um erro. Caminha do sonho para a morte e por isso tresanda a morte. É um engano que nos faz muita falta. T.S. Eliot dizia que todo o poema é um epitáfio. Provavelmente amamos o real porque ele nos engana.
Há de facto na poesia um caminho para a verdade, senão um encontro com ela. Já falámos disto: se a verdade não é universal, ela tem pelo menos um rosto, uma máscara, que todos já vestimos ou sonhamos no passado, ou até que quisemos que fosse a nossa vida.
O Leitor também é o que escreve, pois é. Correndo o risco de citar demasiados autores nesta questão, o que só prova a minha ignorância, lembro ainda Joaquim Manuel Magalhães ao dizer que “o que o poeta desconhece o poema sabe”. Quem descobre essa sabedoria adicional é o leitor e há leitores que nunca escreveram um verso que são mais poetas do que muitos que já os publicaram.
Entendo que falas também na verdade como algo que nos escapa de um dia para o outro, a nós que escrevemos. Isso é apenas uma condição ou um desprazer de quem escreve. Perde-se um pouco com a prática, mas já li dos maiores poetas que lhes acontece isso frequentemente, que o que deitam fora é mais do que o que conservam. Pessoa escreveu poemas sobre isso. É um risco que se corre, escrever um poema num dia e no seguinte ou dois dias depois estar a mostrá-lo, de qualquer forma. O tempo faz muito bem aos poemas, amadurece-os ou rejeita-os como maus textos. Mas, não sei se podemos falar de morte neste caso. Simplesmente enganamo-nos a nós próprios ou somos palavras que se enganam e enganam o que somos amanhã. Penso que cada um tem os seus truques para evitar ao máximo cair neste engano. Eu por exemplo, evito ouvir música enquanto escrevo.
Não sei bem se fui ao encontro das tuas questões.
Beijos
António
Adri- Hummm...pois é.Pergunto-me seguidamente se portamos as palavras ou se elas nos carregam.Já li que sofremos de uma invasão de palavras que por serem significantes nos consolidam como estruturas psíquicas.Seria o mesmo que dizer que a escrita é consequência de uma doença!(eheheheheheeh) Quem sabe?Se pensarmos na nomeclatura pathos que significa sofrimento,paixão e, também, doença...estamos no caminho ( eheheheh).
Quando falas de engano surge-me o enorme engano que é o amor.Sim!O amor pelo outro é o do por si mesmo...Salvo aquilo que possamos detalhar.Amar uma voz, um olhar, uma forma de vestir...então a verdade sobre o amor estaria no mesmo tempo que a verdade do poema: no que vem a falar depois.Pensei nisto porque amar é restar...sobre o que falávamos das migalhas.´..deixar para além de si.Algo assim...Não sei o que pensas disso?
Antônio- Observas bem. Penso que as palavras nos carregam e que é um engano pensar que as carregamos e manipulamos. Ouvi de alguém, há dias, que as pessoas são textos, tal como as salas ou as mesas, etc. Sendo um reflexo da nossa realidade, as palavras compõem-nos. Assim poderíamos muito bem ser representados pelo desenho de letras, que compusessem sílabas, que por sua vez compusessem palavras, ou que não compusessem coisa nenhuma, fossem apenas sons.
Ronald Augusto diz que a poesia é linguagem em crise. Isso tanto mais é verdadeiro quanto é a descrição exacta de certas doenças mentais, marcadas por um desfasamento da realidade e como tal, da linguagem, e marcadas, pela mesma razão, por um desmoronamento das palavras enquanto suportes de nós próprios, da nossa história de vida, do nosso dia a dia. As palavras são a nossa casa. Quando, ao fim do dia de trabalho, pensamos “vou para casa”, esse pensamento aquece-nos. Mas numa linguagem em crise, essa frase pode muito bem ter perdido as paredes e deixará de ter qualquer significado para nós, embora lá fique o seu espaço vazio. Sim, as palavras carregam-nos espiritualmente e desconfio, também fisicamente. O sexo, por exemplo, tem a ver com tudo, com todos os parâmetros da nossa vida. E ele está na nossa mente e também se estrutura em palavras e no forte significado que têm para nós. A beleza chega a doer e logo tentamos atribuir-lhe palavras. Sobre tudo isto, tu saberás mais do que eu.
Não é fácil falar do amor. Mas, já pensaste que, muitas vezes, o amor atinge-nos não com a verdade do presente, a atracção por alguém que nos responda às ansiedades do presente e da nossa idade, mas surge-nos como uma vingança sobre o passado, uma vontade de preencher lacunas do passado. Assim sim, o amor pelo outro é muito mais um amor por nós próprios. Isto sem falar dos casos em que escolhemos o parceiro ou parceira mais bonita, não porque gostamos profundamente dela, mas porque é a mais vistosa no grupo de amigos ou na sociedade. Também no amor as palavras nos carregam, ama-se porque se chega ao amor. Ou, no caso que descrevi, ama-se porque somos admirados, e então as palavras não são bem nossas, é tudo uma grande trapalhada e a palavra deixa de ter qualquer valor, lembrando esse velho conceito de cultura geral, muito usado nos meios sociais, mas que mais não é que a cultura dos outros. Não tem relação alguma com o nosso corpo cultural.
Não sei se amar é restar ou estar. Mas, se damos muito de nós, é provável que nos tornemos em algo mais do que aquilo que vemos no espelho. Talvez deixemos, nesses casos, uma cauda de cometa para trás, que os outros seguem ou simplesmente lêem. Essas coisas não são invisíveis. E se a relação se desfaz é natural que algo em nós se sedimente e fique para trás como se largássemos migalhas.
Tem sido bom, o Carnaval? Beijos para ti.
António
Adriana- Pois é...ainda as mulheres e os homens são de alguém ou de algo.Mas o amor, de fato, constrói mais do que um si mesmo...Talvez aquela verdade de que nos encantamos por um resquício, por uma voz ou olhar.E sempre há de ser de antes, muito antes.Por faltar ou por lembrar.Aliás: qual a diferença entre falta e lembrança?
Fiquei pensando sobre o que tu dizias de não escrever ouvindo música.Também não gosto...
O carnaval...sobre a reunião que te relatei estava maravilhosa!Agradeço tua colaboração com a poesia além mar.Para mim o carnaval é um manifesto, uma ruptura, uma possibilidade de dizer algo do si mesmo.Muitas vezes, ficamos encantados com a obra sem saber do autor.Isso dá a falsa idéia de que as coisas caem do céu, que não há um eu ou vários eus que puseram-se a trabalhar, a falar coisas, a manifestarem-se.Assim é que gosto do carnaval...como possibilidade do Manifesto, com letra maiúscula.Esta correspondência além mar não deixa de ser uma expressão, um certo retorno.Já reparaste que me chamo Adriana Bandeira, não?São os barcos voltando...O que achas disso?O que achas da poesia que vem do Brasil?
Antônio- Um poeta escreveu que “O amor costuma responder por acordes simples”. Não sei se será sempre assim, mas talvez não devêssemos deixarmo-nos enlevar por esses acordes.
Os dias de hoje, no Brasil, estão muito enriquecidos por uma novíssima fornada de autores de grande qualidade. Já ouvi dizer que são grandes as dificuldades em que os críticos e os seleccionadores da boa poesia se têm visto. No entanto já chegaram às minhas mãos duas colectâneas de novos autores e ainda alguns livros de autores, que sendo contemporâneos e ainda relativamente novos, já gozam de grande reconhecimento. Quanto aos novíssimos autores, faço o reparo de que produzem uma poesia bastante cerrada e que não é à primeira leitura que conseguimos extrair algo dela. Parecem ter riscado da sua escrita, e fizeram muito bem, grande parte das metáforas e palavras do passado. Tenho alguns favoritos, mas não vou adiantar nenhum porque concerteza deixaria, injustamente, alguns para trás, apesar de que o que eu disser relativamente a escolhas não adiantará nada ao cenário existente, estou longe de possuir essa influência, mesmo no quadro da blogosfera.
Beijos e abraços
António
Adriana- Boa noite, Antônio.Até amanhã ...que o dia aqui já amanhece e as luzes se dissipam fingindo estarem impunes.
Beijo com todas as letras
Antônio Amaral Tavares, poeta português: http://acasaquecaminha.blogspot.com/
Adriana Bandeira, Brasil: http://indecentespalavras.blogspot.com/
Genial!
ResponderExcluirQuando dois poetas se encontram, quem lucra somos nós, seus leitores.
Um beijo e parabéns aos dois.
Carmen Silvia Presotto
www.vidraguas.com.br