quarta-feira, fevereiro 16, 2011

UMA VISITA ENCANTADORA NO INDECENTES PALAVRAS- Falando sobre reconstruções com Antonio Amaral

A INTERRUPÇÃO DO ROSTO

1. interrupção da boca

Onde um astro havia que queimava à distância os lábios
por causa da ignorância que de si crescia na boca
como uma pedra fria escurecida

2. interrupção dos rios

lavravam os rios as pessoas sem terra
encardiam as mãos e os pés com o mistério
dos choupos acesos pela água e deles dos rios
guardavam apenas o rumor que se lhes ouvia
ao atravessarem juntos o tronco nu da tarde

3. interrupção das palavras

a madeira chegava à cidade para
construir casas e acender lareiras
toros que vinham de longe
da luz rápida das inclinações sobre os rios
que no seu sangue deixavam a imitação
do movimento
que vinham das vésperas do gesto largo
de vidro do machado inicial
onde o olhar não penetra a bruma
são vazias as palavras
sem o sangue dos primeiros nomes
bestas que nascem mesmo assim
lembram ausências
em casas a que se perdeu a chave

4. interrupção das casas

as pessoas guardavam os cobertores e os lençóis
em arcas que arrumavam sob a luz tardia
como se preparassem os minutos para a noite
e quando chovia olhavam pela manhã da janela
a curva da rua que tomavam para o trabalho
onde a água no inverno se acumulava muito funda
e quando ao fim do dia chegavam a casa fechados nos muros dos passos
bocejavam de fome e sono o frio que traziam para as mesas
as casas são palavras com paredes
frases que chamam pelo calor de um nome habitado
aqueles que a elas regressam

5. interrupção dos cabelos

as pessoas traziam os cabelos apanhados
e na algibeira pedaços de silêncio que recolhiam
os seus avós nas aldeias debruçavam-se sobre as horas da terra
para apanhar as batatas
espreitavam por hábito ao fim do dia o avanço da vida
na porca parideira no pocilgo e antes do deitar
ouviam em pequenos rádios canções que os ponteiros
do relógio decoravam como decoravam o seu caminho
não é fácil os cabelos esquecerem a linguagem idêntica do vento
transformarem-se em arame

6. interrupção do olhar

o olhar das pessoas parava no ruído da areia pisada
e no mato dos bosques que da acidez da luz
não protegia
das casas altas do tempo não havia notícia
ou da forma como o mar recebe a curva larga das gaivotas
os peixes que a profundidade guarda
e desse mar algas havia que queimavam os olhos
e eles por isso o ignoravam como se ignora o mundo

7. interrupção do rosto

como pode o rosto ser contínuo
sem o vidro da memória
que do sono se não levanta
como se pode
com a poeira das pedras continuar o rosto

8. interrupção do silêncio

vestem camisas engomadas as pessoas
para calar os murmúrios que se escapam
da nudez dos troncos sob a luz trémula da tarde
procuram no silêncio o casaco para o frio
e o ruído dos carros que passam nas suas ruas descendentes
é abafado e perde-se no esquecimento da curva em que terminam
as cidades despem aqueles que morrem longe dos rios
de que perderam o risco sussurrante nos mapas
e bebem o mosto do seu silêncio

9. interrupção da fala

dificilmente se calçavam de manhã as botas
ocupadas que estavam pela sombra das palavras
recolhia-se o reboco do chão junto às paredes
da interrupção da fala sabemos porque
no muro precário das palavras ficou
a impressão forte de uma mão a cor de sangue
o primeiro gesto
de quem entra nessas casas de barro
à beira do deserto.


Antônio Amaral

visitem http://acasaquecaminha.blogspot.com/ de Antonio Amaral

4 comentários:

  1. Querido Antonio.
    Fico honrada e feliz com teu presente.mais do que isso, posso compartilhar no Indecentes Palavras esta poesia que, para mim, é uma das mais bonitas que já li.A cada uma das amadas palavras interrompidas: boca,rios,palavras,casas,cabelos,rosto,silênciofalas...há uma recoosntrução do traço que faz universal a ignorância, a madeira, o sangue dos primeiros nomes, as palavras com paredes, o esquecimento da linguagem do vento ( isso é mui belo¹),o vidro contínuo d eum rosto, as camisas engomadas e as botas ocupadas...Há uma penunbra, uma réstia que d eluz que ilumina um tempo infinito em que nos refazemos, a cada vez.
    Agradeço muitíssimo teu presente!
    beijo grande
    adriana bandeira

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  2. Obrigado Adriana, pela divulgação. O bom gosto com que construiste o teu blog, só engrandece o meu poema.

    António

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  3. Entre todas as formas de poesia que existem há uma que decididamente não merece ser lida em silêncio, de tanto gosto que à boca podem dar as palavras garimpadas na sua sonoridade para além do sentido. Quando essa pedra mais preciosa do verbo é lapidada em função de uma imagem, uma emoção, um sentimento que provoca a cumplicidade do leitor na sua compreensão do que é celebrado ou transmitido, estamos na presença de um trabalho de ourives. É o caso da poesia do António e não de muitos outros, como o Manoel de Barros.
    Adriana, obrigado pela partilha.
    Um beijo.
    Jorge Rein

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  4. Que bom estar aqui lendo, relendo António e A casa que caminha e Jorge dizes muito do fazer poesia, há poemas que são verdadeiras arquiteturas, este é um deles.

    Um grande abraço a todos por aqui. e parabéns Adriana.

    Carmen.

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