terça-feira, maio 03, 2011

A pele da palavra é o barco que segue no tempo...falando das portos com Leonardo B.



1-Leonardo...é comum lermos um poema, um texto, uma frase e, de certa forma
imaginarmos o autor como aquele que sempre soube o que ia dizer. Neste aspecto é
imaginário indigesto consumirmos a palavra como já pronta, plantada no seu autor,
desde antes. Poderia nos falar um pouco de teu processo dentro disto? Porque escolheste
escrever?

Seria dramático se assim fosse, Adriana, a “palavra pré-confeccionada”, o objecto de
arte já impresso, pré-fabricado em cada um de nós, como uma fatalidade, um destino
ao qual não nos podemos furtar, pelo menos àqueles que ainda gostam de encontrar
o mesmo rosto todos os dias ao espelho, pela manhã, com mais ruga, menos ruga.
Prefiro pensar, refazer diariamente a minha relação com a palavra, e pretende-la
como uma união de facto, como um “casamento secreto”, em que cada um sabe das
suas obrigações e deveres, dentro de portas, mas entre si e diante do mundo, entrega-
se incondicionalmente, sem fronteiras ou regras bem delimitadas, e naturalmente,
sem julgamentos desnecessários, nem ambições frustradas por antecipação… eu e a
palavra, damo-nos bem, mantemos a relação saudável e sem máscaras, sem contrato
assinado no cartório, sem a necessidade de manter a “fachada”, o cadastro limpo e
imaculado, ainda que de quando em vez haja lugar para uns pequenos delitos, umas
pequenas traições, nada de mais… Por outro lado, seria indigesto, e pego na tua
expressão, se a palavra já estivesse “cá dentro”, devassando o meu espaço, como dona
e senhora da minha vontade e vice-versa; a palavra tem mais que fazer, para obedecer
a um estereótipo, que ainda que seja muito confortável, não funciona, é redutor; em
determinados momentos, abrem-se excepções na nossa relação, mas sempre com o
cuidado dos amantes… deixo-a ir e voltar, quando deseja e bem entende, e penso que
me exige, mais ou menos o mesmo, por muito que nos custem algumas separações
forçadas…

Porque escolheste escrever?


                                 Leonardo ainda menino,no primário

Ora aí está “a pergunta”: Adriana, terão as coisas mais simples uma resposta
convincente, imaculadamente decente? Porque é que as nossas paixões são
comparáveis, por baixo, aos tornados que arrasam tudo à passagem, montanhas e
monumentos milenares, incluídos? Porquê, ao idiota que se aventura no mar para ir
descobrir um mundo qualquer, que nem nos mapas existe, disposto aos caprichos das
tempestades, e nem sabendo muito bem o que vai fazer às Índias, às Américas ou ao
Japão? Porquê ao homem que insiste em pisar o solo lunar, sem que faça a menor ideia
que aqui no quintal ainda existem milhões de perguntas por responder e questionar,
uma família que o reclama para o jantar que arrefece, mas não... o tipo teima ir mais
além, na escuridão da sua ignorância, sem se aperceber que nem há uma questão a
responder… nada de nada. Não faço a menor ideia porque escrevo, nem sei bem onde
arranjei este “contrato” com a escrita. Sei que foi há muito tempo, já tivemos bons e
maus momentos, e nem sei se foi a escrita que me escolheu ou contrário… nem faz
diferença. O mesmo já me aconteceu com as tintas, com a pintura, um caso furtivo,
diria, em que “as coisas não funcionaram” e tivemos a coragem de concordar
mutuamente que cada um ia à sua vida, sem causar mais danos ao mundo… o que não
quer dizer que não nos encontremos de novo, eu e a pintura e voltemos a ter um caso,
não… acredito que está sempre tudo em aberto e com os anos fui aprendendo a

entender que uma das expressões mais abjectas que utilizamos todos os dias é
um “nunca mais”. Da mesma forma, que a minha relação com a escrita é desapegada,
e como tal, senão mais frutífera, pelo menos mais sincera, com a pintura acontece o
mesmo… talvez um dia nos encontremos por aí de novo, e nunca se sabe… Enquanto
houver incondicionalidade e sinceridade à “flor da pele”, tudo fica em aberto e vai
ficar, até porque é aí que tudo começa e acaba, na sinceridade ou na falta dela.

2-Não é raro que tua poesia inspire uma denúncia sobre a morte. Quando chego a
isso costumo apontar a verdade pontuada a cada parada, no ritmo da escrita mesmo;
costumo dizer que o poema nasceu em carne viva. Concordas comigo? O que achas
desta analogia?

Não é fácil concordar ou discordar, porque é algo que nos escapa, enquanto pessoas
simples que estão a dar forma a algo, na constante procura do resíduo, do que sobeja
da vida, para o enformar e dar-lhe vida, animar. E aí há uma tentação enorme de nos
comparamos a “criadores”, mas nada disso, essa perspectiva é muito presunçosa,
ainda que haja quem a tome em forma de remédio, às colheradas, todos os dias, mas
isso não é o que mais me importa… isso é água-benta que cada um toma a que quer.
Na minha perspectiva, o escritor, o artista enquanto ser que vai embirrando com o
mundo, inconformado, esgravata, quando muito, um pormenor, um acidente feliz no seu
dia, uma palavra que alguém se esqueceu de semear e vai por aí, sem rumo, mas com
a teimosia indispensável de quem se pensa poder “alterar” o inalterável… e por vezes
os sintomas muito semelhantes ao “acto da vida”, ao acto dum parto: uma luta intensa
num lapso de tempo, um resgate para a vida do que se sabe ser um combate desigual,
medem-se as forças entre o que temos por vida e morte, a ansiedade extenuante do
combate e no final… aí estamos: prostrados, exangues, como se se tratasse do nosso
último momento, a última parte dum ritual, o fim, e afinal não, ainda “estamos vivos”,
o poema está são e salvo, pela nossa parte. O que lhe acontecerá depois, já nos
ultrapassa…

Tenho muitas vezes presente, e de forma bastante vivida, o dia em que assisti ao parto
do meu primeiro filho e que inevitavelmente revolveu-me, mexeu na minha estrutura
interior, na forma como se condensa a minha relação com o mundo… tudo naquele,
nesse momento é tão frágil, tão breve, tão desigual e ao mesmo tempo tão claro, tão
evidente, que só nos pode apequenar, a nós homens que “assistimos” a essa luta com
a convicção que estamos dentro e com a mesma tenacidade, com a mesma audácia
que a mulher que “entrega à vida o que lhe pertence”… mas não; estamos, ainda
que de corpo e alma, e o pouco que nos compete é estar ali, a observar, a ajudar nas
coisas práticas do parto… mas, da sala, enquanto homem num mundo estranho que é a
maternidade, trouxe, para além das muitas emoções que não cabem na nossa conversa,
nem as saberia materializar, o que soube reter, o que me foi permitido reter da grande
metáfora da vida, do nascimento duma criança, filho meu, e que desfaço e refaço
muitas vezes, enquanto escrevo, enquanto me entrego de novo ao mundo, enquanto ser
frágil que fui e que sou, em constante dor, que não é nem de parto, nem de chegada…
é outra coisa qualquer, uma outra forma de analogia e semelhança de vida, uma
constante busca duma outra dimensão da vida; aí concordo, salvas as distâncias, que
sinto o poema carne viva, ou melhor, um pequeno sopro que não sabe muito bem da sua
dimensão, mas que existe e está lá, a ganhar nos lapsos do tempo, a força, a coragem, o
despojo que nos falta no quotidiano, banal e comum. E é consolador, muito consolador,
o sentimento de que algo que em nós morre, e que vai morrer necessariamente, poderá

ressuscitar “no outro”, ganhar uma nova forma, uma outra dimensão, uma essência
independente, algo que nos escapa, mas consola, apesar de tudo. Talvez que daí, o meu
quase desapego ao poema, para me entregar incondicionalmente à palavra, e neste
particular, à poesia… mas daí a “ser poeta”, vai uma grande distância.

3-A barca dos amantes...ali tem um título curioso que preciso saber: o que é “ A criança
inacabada”?

Nada de enigmático, nada de mais… para o caso de ser relevante, Adriana, comecei
a rascunhar aquilo que vulgarmente chamamos poemas, bastante cedo… talvez com
treze, catorze anos, coisas pequenas, que hoje poderia facilmente negar, mas na altura
deram um jeito terrível para manter uma “certa aura”, que em plena juventude, o
maior e mais imediato proveito que trazem são umas quantas conquistas femininas e
um “causar impressão” nos professores de Português e consequentemente, uma ou
outra nota um pouco melhorada, e até aí, tudo bem… e o depois? O depois é o pior:
quando chega o inevitável sentimento de que somos o novo Pessoa, ou algo que o
valha, é que vem o Inferno.

Escrevi regularmente até aos meus vinte e cinco anos, mais coisa, menos coisa, até
que, e mais uma vez de mútuo acordo, eu e a poesia separamo-nos durante um período
suficiente, ainda que longo, mas proveitoso para ambos. A esse período anterior, esse
meu primeiro contacto com a poesia, em que assinei como Ricardo S., fui guardando
por anos e anos, aos tombos, nas gavetas improvisadas, o que sobrava do papel que
não foi rasgado ou esquecido nas mudanças de casa. Do que consegui reunir desse
período, nasceu o blog A Última Estação, que está provisoriamente encerrado, por
diversos motivos: ainda salvei cerca de trezentos textos, que ainda espero compilar
decentemente, retirar do formato digital o melhor possível, e reunir uns quantos de
forma a encerrar em definitivo esse capítulo: a haver livro, chamar-se-á “A Criança
Inacabada”, o que já esteve muito perto da edição, mas não considerei oportuna, e nos
moldes que me foi sugerida, não seria proveitosa para ninguém… então, lá estão, ainda
por se verterem em tinta no papel, quando assim o entender por melhor momento.
Pelo menos desapareceram as pastas arquivadoras e os originais, que fiz questão de
destruir à medida que ia colocando cada texto no Última Estação… menos bagagem
por transportar!

4-Ao ler teus poemas algo rasura, marca que eles apenas são um resto. Explico: é
como se apenas uma parte ali estivesse. Assim também parecem ser tuas frases quando
comentas no Indecentes Palavras. Seria um poema, sempre, inacabado?

Pode parecer uma analogia ridícula, mas vejo-me e não raramente, como uma espécie
de médico legista, de palavras e sentimentos, de resíduos emocionais, de detritos pouco
interessantes, e não raras vezes levo-os para dentro da escrita, autopsio-os com a
minúcia possível, mas perco-me muitas vezes no detalhe insólito e desinteressante,
com o que está por dentro… não tenho urgência do diagnóstico e isso faz de mim um
péssimo sobrevivente, no mundo. Ainda assim, tenho muitas vezes presente os versos de
Poe, “all that we see or seem, is but a dream within a dream”, que para o bem ou para
o mal, trago-os para a minha percepção que tenho da palavra, da palavra que sobra da
palavra e se refaz numa outra… numa incompletude, numa imperfeição da percepção
da palavra, que pode ser constantemente alterada, de todas as vezes que ainda não a
sentimos esgotada, aprisionada nos dicionários, e assim “ela” o permita.

O poema, como território de exploração emocional, existe enquanto persistir essa
noção de efémero, de frágil, de incompleto dentro de si… e raramente, senão nunca,
como objecto final, obra finalizada, matéria de facto para ser estudada: a ser assim,
vejo-o como mau sinal… já nos fizeram o funeral há muito tempo e as medalhinhas
comemorativas já foram distribuídas com profusão. É essa a sina da poesia, que
haveremos de fazer?... (risos)



                                          


5-O que são, como lugares subjetivos, os espaços de escrita e de leitura? O sujeito que
lê seria o mesmo que escreve?

Frequentemente coincidem, assim creio, Adriana, ainda que haja um fosso a separar
ambos, um fosso enorme que podemos apelidar de “exposição”, o suporte papel, por
norma, a ponte inevitável entre um e outro, entre ambas as margens.

A dificuldade de comunicar, de esvaziar esse espaço subjectivo, tem sido atenuada com
a descoberta, com “democratização” da escrita e da leitura nos meios digitais, o que
naturalmente é visto como um perigo, um alarmante caos nos pretensos meios eruditos,
mas isso não é questão onde me detenha por muito tempo, até porque as regras do
jogo mudaram e vão continuar a mudar a um ritmo vertiginoso… preocupa-me mais
a questão do “até quando?”. E o mais é óbvio, “desse lugar”: onde se ganha espaço
de relação entre escritor/leitor, no mais das vezes perde-se o poder, o que de mágico
tem própria escrita, o do seu amadurecimento enquanto relação no espaço e no tempo
do indivíduo, o poder de crescimento no horizonte do individuo… e nos meios digitais,
tudo é tão breve e fugaz: “coleccionam-se” amigos, pretensos admiradores, luta-
se arduamente pelo número de comentários em cada post, com ligeireza “aceitamos
compromissos”, não se criam “tempos” para ponderar o essencial nessa relação,
tão frágil que são os espaços partilhados da escrita, entre quem lê e quem escreve…
mas no fundo da questão, é tudo uma questão de reciclagem: o mesmo passa-se no
meio quotidiano da edição, e da “promoção” da imagem do escritor e mais raramente
do livro, e no mais das vezes de modo bem mais deprimente… a diferença está na
remuneração ou na falta dela, na exposição mediática que tanto se odeia da mesma
forma que se procura com uma devoção quase irracional… e ele há tantas formas de se
querer fazer passar por vitima dos paparazzi… (risos)

6-Li uma entrevista que deste há algum tempo atrás. Ali descreves o momento
em que passaste dias escrevendo...e que acabaste por herdar uma grande dor nas
costas(eheheehheheh). Pois bem...ser tomado pela letra, ser invadido pelo desejo de
marcar, de registrar...escrever. Como descreves isso?

O Fernando Pessoa chamaria êxtase místico, eu prefiro chamar “necessidade a quanto
obrigas.”(risos)

O texto que então escrevi, ainda está intacto, sem revisão, com setecentas páginas por
acontecerem livro, talvez um dia, ou talvez não… é, penso eu, um rascunho de romance
histórico que “tinha que acontecer”, naquele momento, naquele período. A grande
herança que trouxe, de então, dos quatros meses de reclusão voluntária, essa grande
dor de costas, é algo que ainda a esta distância dói, não nas costas, na região lombar
propriamente dita, mas no acto de então “ter tido que me esconder” para escrever, a
coberto de alguns cúmplices, o que é tão abjecto e quase surreal, que entendo que devo
assumir… triste, mas verdadeiro. Num meio onde o individuo que pretende escrever

é visto como um parasita e com a agravante de que se não há rendimentos palpáveis,
então a “doença é grave”, está feita uma parte do quadro: “escondi-me”, “adoeci
subitamente”, refugiei-me dos olhares penetrantes de quem encara “estas coisas da
escrita” como uma perda de tempo, própria para vadios . E se calhar até têm razão,
os meus queridos detentores de todas as verdades, até porque o mundo é pequeno
demais para que eu o consiga entender e quando se chega à parte onde se encontra o
umbigo, o do outro, nunca o nosso, é uma complicação… e então, houve a necessidade,
a “urgência da escrita”, para finalizar o mais rapidamente possível o que tinha entre
mãos. Claro que preferia ter redigido noutras condições, com outra disponibilidade
e envolvimento com o pequeno mundo que me rodeia, mas não se pode ter tudo… tive
um apoio inesgotável por parte do meu filho e da minha esposa, que abdicaram de mim
durante demasiado tempo e me ajudaram incondicionalmente no processo, os únicos a
quem devo um gratidão eterna e inominável pela compreensão que me dedicaram, e foi
o que sobrou… o resto, seria “dourar a pílula”, que talvez por tão amarga, ainda não
a tenha conseguido retomar original do texto para o rever e dar um rumo … mas tudo,
tem um tempo e cada um deles não mais curto que o outro, mas antes do mesmo espaço,
da mesma dimensão.

7-Um psicanalista francês, Jacques Lacan, diz que o estilo é o homem. Também aponta
que “ o estilo é aquele a quem me dirijo” ou seja, sempre minha fala, meu registro diz
respeito a um endereçamento. Sem endereço...não teremos fala, escritura, gesto, texto.
O que pensas disto?

Antes de mais e com o devido respeito, o tipo tem um sentido de humor que invejo,
por certo… e ainda bem que assim é: são poucas as pessoas mais deprimentes que as
pessoas ligadas à “área do ser humano” e artes, que as que se isentam do sentido de
humor… são um estorvo bem intencionado, mas não deixam de ser um estorvo.

E efectivamente, mesmo não conhecendo Lacan (mea culpa, mas não chegamos a todo
lado), conheço-me um pouco mais que nada e algo do mundo que me rodeia para tirar
partido dessa reflexão, tão acutilante: parto, sim, parto do principio que o individuo é
barro moldado pelo ambiente que lhe rodeia, quer o oprima enquanto ser humano, quer
o liberte pela comunhão de interesses, objectivos, afectos… e no entanto, por muito
que se queira evitar a ideia perigosa de que o homem não têm fronteiras geográficas
a delimitar, enquanto artista, a ideia subjacente, está lá: enquanto “poeta”, eu
não sou de lado nenhum, de ninguém, mas isto enquanto poeta ou pintor… assim
que “baixo à terra”, como ser humano não me consigo escapar a essa teia invisível
que é a circunstância, o território emocional a que estou circunscrito… e se por
questão de comodidade, se por uma questão de conveniência, se por uma questão de
sobrevivência, o endereço, o laço que nos entende e solta é o mesmo que nos prende, e
habituamo-nos facilmente a essa “ordem das coisas”, tão contestada quanto imutável
no tempo.

Encontramos essa evidência em qualquer parte, bem delimitada… até na poesia,
Adriana... até com o Sá Carneiro, quando pensava, escrevia e deixou ao mundo
que “Eu não sou eu nem sou outro/ sou qualquer coisa de intermédio”, que passe a
heresia aos puristas, tem tantas leituras quantas um grande verso pode ter. Não sei
quantas polaridades tem o artista, mas apostaria que ultrapassam as duas possíveis; ao
artista que se diz livre, pleno de voo, pleno e sem amarras, é já “outra coisa”, mas não
a mão humana; Ao artista que procura no mais além, no outro, no outro lugar o seu

ponto de referência e orientação, é já “outra coisa”, também, mas não ele próprio…
então, o ser ambíguo pode nem ser uma fatalidade, mas pelo menos dá uma grande
ajuda, e isso nem é motivo de preocupação, até porque não falamos de outra coisa
desde que o homem aprendeu a comunicar… o nosso lugar no mundo é uma fixação,
um interrogação a full-time que se digere muito bem, até porque a resposta anda por
aí, mas ninguém a viu, não há tempo… temos mais que fazer. (risos)

Contudo, claro que preferia andar por aí no mundo a espalhar os versos de Jorge
de Sena, “Nenhum mundo é meu. Todos estão em mim desde que existo.”, mas isto é
poesia, é a esfera do possível enquanto poesia, mas tão somente poesia… o poeta tem
uma tremenda habilitação para fazer revelações, mas tem pouca queda para revoluções
na explicação do ser humano… bem que tenta a aproximação, mas é sempre terreno
minado.
Quanto ao Lacan, vou colocar nas minhas leituras obrigatórias, disso não duvido…
(risos)

8-A pontuação é sempre...do leitor. Digo isso porque embora existam os pontos
(exclamação, interrogação, vírgulas e etc) de quem escreve, o sujeito que lê o faz
naquilo que pode associar suas próprias pausas. A poesia facilita o reconhecimento do
texto que vai ser outro sempre, a cada vez que lido vai depender da respiração do leitor.
Tens esta percepção ou achas que quem fala é somente o escritor?

A pontuação, como qualquer outra convenção, reparte os seus méritos entre o capricho
e a necessidade… a que sobra é a parte que nos faz falta. (risos)

Ainda no inicio, nos meus primeiros tempos na poesia, levei um “sermão” dum tipo
mal-humorado, acerca da pontuação dum texto que tinha enviado para a redacção do
DNJovem, que então era um suplemento dum jornal de grande distribuição, e que por
mais voltas que eu desse, não encontrava justificação para tamanha reprimenda: ainda
pensei em argumentar, ponto por ponto, que não, que tinha respeitado as regras todas
da casa, ou então alegar em minha defesa que o José Saramago, muito antes do Nobel,
também tinha uma relação difícil e incontornável com a pontuação, mas não… não
enviei mais nenhum trabalho e com isso, nem eles, nem tão pouco eu, ficámos a perder
grande coisa.

Na poesia, a pontuação é um luxo que não vemos assim tão abundantemente espalhada
noutras áreas da escrita; creio que há um respeito muito grande pela fluência da
palavra, pela sua dimensão enquanto um todo chamado verso, pelo intenso jogo
de “tentativa e erro” e consequente correcção, que não vejo em muito géneros. Por
vezes faz-se muita batota, mas essa só está ao alcance dos que andam há muito pelas
ruas da cidade, da cidade da poesia… quem mora nos “subúrbios” tem que ter muito
mais cuidado, andar com as contas da pontuação bem alinhadas e em dia, até porque
a concorrência é feroz e não perde uma oportunidade para fechar a “casa do poeta”
assim que lhe apanhe uma falta.

Quanto ao leitor? Ao leitor cabe sempre a última palavra, o último acento, mesmo que
não faça o menor sentido, mesmo que o “rosto” do poema fique desfigurado, por falta
duma figura de estilo que nem os prontuários se haviam lembrado, por uma falta de
fôlego que por vezes se confunde mais com falta de ar, por uma virgula tão absurda
quanto desnecessária… mas fazem parte do jogo, essas regras e não há como esquivar;

pena é que a “cadeira” do leitor seja diferente da do escritor e não é em vão que a
nossa percepção depende sempre muito do lugar que nos encontramos no mundo

Mas enquanto poeta ou escritor, ou algo que me valha, espero sempre um pouco de
paciência, até porque o Prontuário Ortográfico não é um objecto assim tão divertido
quanto isso… e se ainda viesse bem ilustrado e elucidativo como alguns livros que
todos bem conhecemos, do género do Kama Sutra, ainda vá que não vá… (risos)

9-Poderias apontar tuas grandes referências para escrever?

Adriana… agora, sim… sou apanhado de surpresa, e tenho duas hipóteses: a primeira
e a segunda! A primeira faz-me inclinar para “confessar” a minha admiração por
Milosz, por Rimbaud ou Maiakóvski, por Pessoa ou por Whitman, por Malcolm Lowry
ou Emily Dickinson, e a lista podia ir até ao céu. A segunda é que conhecendo um
pouco de alguns excelentes poetas, bons escritores, extraordinários músicos e pintores,
não me sinto especialmente inclinado para apontar um nome, uma “escola”, uma
influência. Recolho, como penso que muitos de nós, com uma agradável sensação
qualquer poesia que me faça sentir tolo, declama-la só por declamar, na minha
privacidade, mas nenhuma referência forte, nenhuma herança em particular pretendo
tomar dos que tenho por meus mestres: escuto-os, trago-os e sigo o meu caminho,
aquele que procuro, aquele a que Emerson se referia como o Caminho em Si, nada
mais…

Por outro lado, é quase inevitável a música, a omnipresente música… aquela com que
escrevo, aquela com que leio, aquela que tem que estar sempre por perto, isso sim,
confesso… e mesmo assim, não tenho uma referência, um género que me faça sentir
perto da minha zona de conforto… apontar nomes é difícil, mas “estou em casa”
quando escuto algo da Virgínia Astley, dos Durutti Column, do Jan Garbarek ou do
Gismonti, sinto-me bem com a Björk quando não necessito de tanta concentração,
trago da estante os poucos Chet Baker que tenho quando estou de bem com o mundo…
e ficava dias inteiros aqui, a discorrer sobre cada um deles.

Mas se há dois ou três nomes que me colocam em sentido… é aí que pretendes chegar?
Certo! Na poesia, o Ramos Rosa e o Al Berto, na literatura contemporânea o Murakami
e o Rushdie e o grande livro da minha vida, não hesito, é “O que Diz Molero”, do Dinis
Machado… e há mais alguns por perto, mas não digo….

10-O que te faz ...escrever?

Com as devidas distâncias e diferenças, acredito que é o mesmo que move o Cristão,
o Muçulmano, o Judeu, o Hindu a recorrer às suas Igrejas, aos seus Credos; uns
chamam-lhe Fé, outros podem-lhe chamar insondável magnetismo, mas basicamente, o
que nos move e nos une são as semelhanças: as idênticas buscas, as idênticas dúvidas,
a idênticas recompensas que em principio nunca virão ou não chegarão a tempo, mas
confortam-nos, preenchem-nos, dão sentido a um caminho, apontam perspectivas,
alinham horizontes… todos vagos, frágeis ou meras ilusões, mas movem-nos, fazem do
nosso corpo inútil algo de válido para o mundo, ainda que de forma efémera, sempre
efémera… e tudo isso raramente tem uma explicação racional, não é verdade?

11-Amante ... a palavra amante diz respeito a estar em busca do amor. Para além de ser
objeto amado, o amante está ciente que sua busca é constante. Para quem lida com as
palavras isso é mais do que uma verdade...é o ponto de partida. Não findam as faltas e
nem as palavras. Pensaste nisso ao escolher o nome do blog?

Quando iniciei o blog, a Barca, não tinha a menor ideia do que poderia decorrer, nem
me “assaltaram” os dilemas do nome a dar, essas coisas pequenas; Intuía apenas que
queria regressar à escrita, ao texto poético, ainda que as bússolas não fossem muito
claras no sentido a tomar. Então, em sinal de homenagem a uma canção que nem será
necessária a explicação da importância que tem em mim, ficou e foi ficando como A
Barca dos Amantes e até hoje ainda não tive problemas com o titulo que nem sei se
está registado, e que a posteriori descobri que se tratava também dum romance de
António Barreto, do qual não fazia a menor ideia… mas regressando ao titulo, o lado
mais simbólico, ao escolher o nome do blog, esteve sempre relacionado com a própria
definição de poesia, que encontrei sempre, desde o primeiro instante, nos versos da
canção do Milton Nascimento e do Sérgio Godinho. Foi um pouco por intuição e sem
pensar que o blog pudesse ser associado “a mais um blog de poemas de amor”… já
aconteceu, mas paciência. O curioso é a própria Barca dos Amantes, não ter até hoje
tido uma alusão que fosse à expressão, à palavra “amor”, um pequeno poema que
fosse… e não é por preconceito ou defeito, mas deixo os poemas de amor a quem os
sabe fazer, e rendo-me perante um “bom poema” de amor… mas esse não é o meu
caminho: acredito que uns nasceram para cantar o amor, outros para vivê-lo, outros
para o tornarem possível, outros para o arquitectarem, mas por agora, nem um poema
de amor, até hoje… mas quando acontecer, haverá festa!

Contudo, essa busca constante, esse amor incondicional, esse lado mais vivido do
que temos por amor, “cantar o amor”, é um terreno que pode estar minado pelo
preconceito, por uma linguagem emocional muito defeituosa que por norma é a que
nos cabe, pelo que não conseguimos trazer do melhor que temos, do espelho que vemos
pela manhã; não é fácil fazer um “poema de amor” e se o fazemos, a interpretação que
se lhe dá está muito próximo do “confrangedor” e cheia de futilidades, lugares comuns
e outras barbaridades, e então… prefiro experimentar a minha incondicionalidade à
palavra, ao mundo, escreve-la como “carta de amor”. Mas adianto, que a haver um
primeiro livro, retirado da Barca dos Amantes, um enxerto sereno que possa vir, terá
um nome completamente diferente, que já anda há muito cá dentro e já deixei sinais,
meros sinais…

12-Ficaríamos honrados se nos contasses um pouco do teu dia a dia, do que te inspira a
escrever, das coisas que gostas de fazer...

Não é uma pergunta fácil sobretudo quando estamos numa fase de transição, num
desejo de passar a outra fase da vida, em que é imperativo tomar opções, marcar
roturas, solidificar o que muitas das vezes nem nos apercebemos no quotidiano.

E ao contrário do que sentia Octávio Paz, que para ele “a poesia e o pensamento são
um sistema de vaso comunicantes. A fonte de ambos é a minha vida: escrevo acerca
do que vivi e vivo.”, a minha forma de estar no mundo e na vida, pouco ou nada se
reflectem na poesia que escrevo, nas pequenas coisas da vida que me fascinam. A
minha forma de estar na escrita, gostaria de argumentar, vive mais do “reflexo”,
contemplação e desejo, que propriamente do quotidiano, que o mais das vezes é

enfadonho e banal, e ainda mais para uma pessoa vulgar, como é o meu caso, fútil, o
mais das vezes.

A grande parte da “experiência” que trago em mim, que ainda sobrevive no tempo, é
o que resta do tempo em que vivi no Algarve, perto do mar, demasiado perto dum mar
contemplativo e sereno, como é o Mediterrâneo, completamente diferente daquele em
que “quase nasci” dentro, o Atlântico, selvagem e triste, perto de Lisboa. Aí, boa parte
do que trago e exploro ainda hoje, nasceu por completo, aí , durante o período que
morei no Algarve, onde as memórias não se conservam como “vastas feridas”, citando
Chico Buarque, mas apenas memórias, tão somente, e ainda as vou reescrevendo, como
se o sereno Mediterrâneo estivesse por perto, esse aí…



                                            mar de Algrave, mar de dentro

Actualmente vivo numa pequena aldeia, no interior do país, onde tudo aparenta ter um
prazo definido, um pequeno paraíso em ruínas quase. É no pequeno quintal, por detrás
da minha casa, que quase todos os poemas da Barca nascem, ainda que não utilize
a expressão “inspiração”, ou pelo menos duma forma directa: o horizonte que me
rodeia é calmo, mas duma calma tensa, os caminhos parecem abandonados, a sensação
de “pertença”, a serena pertença de quem ama e dá o peito pelo lugar onde deveria
pertencer, desvanece-se dia após dia e costumo dizer e já não é em tom de brincadeira,
que um dia o carteiro vai deixar de passar por aqui… é a sensação que tenho do país
que habito..

Então, é ausência de fronteiras, mapas ou bandeiras, que se materializam lentamente
e sem pressas, na terra da escrita, na poesia, nesse fértil terreno das letras, esse o meu
próprio país, ao qual me entrego por não me reclamar tudo, o todo de mim… dou o que
posso, o que sei, o que sinto, e se mais não posso, não posso…


13-Publicações...?Como é a política de publicação de literatura ou poesia, aí em
Portugal?

Nessa questão hesito um pouco, até porque as opiniões não são consensuais quanto ao
assunto e fala-se muito em torno desse “problema” mas diz-se muito pouco ou quase
nada; é fácil ter uma opinião acerca de tudo e mais alguma coisa, mas como não me
seduz a “tudologia”, prefiro manter alguma distância ao opinar sobre o assunto.

As queixas são frequentes, aqui como em qualquer país… e não deve ser muito
diferente em Portugal ou no Brasil, como na Nova Zelândia ou no Canadá: todos
reclamam e ninguém tem razão, como na casa onde não há pão.

Eu, pessoalmente, como não tenho contacto com o mundo da edição, também não tenho
por onde reclamar, e muito antes pelo contrário: o suporte virtual tem-me ajudado
imenso a percorrer o caminho mais longo, aquele que semeia e contempla, o deserto
inevitável do escritor… a proximidade, a empatia e arrisco, a amizade que encontro
no mundo dos blogs não tem paralelo, quero acreditar, no mundo da edição, em que os

critérios são relativos e um pouco “nebulosos”… mas só entra nesse mundo quem quer,
não é verdade?

Neste momento, não penso na edição seja do que for, e o “momento económico e
social” não acredito como propicio, e as pessoas, aqui e em geral, têm mais em que
pensar que em livros de poesia: os tempos são difíceis para editar, porque também
estão difíceis para o leitor que gostaria de comprar um livro, e então, há que parar
um pouco e pensar… mas, todavia, não implica o encerrar portas, de forma nenhuma:
não perco de vista um sonho antigo, renovado todos os dias, o de ter a minha própria
pequena editora e trazer desse lado do Atlântico e naturalmente deste lado também,
pessoas, poetas incríveis, trabalhos de alguns que me estão muito próximos, duma
forma ou de outra, com uma qualidade tão absolutamente desperdiçada que, passe a
expressão, dá dó de tanto desperdício… e daí ter adiado e adiado a hipótese de editar o
pouco que tenho reunido, do trabalho que tenho desenvolvido, porque quem sabe, se o
desejo se concretizar, não dê trabalho, também, ao Leonardo… (risos)

14-A solidão...Gosto de dizer que nunca estamos sós. Estamos, sempre em dois, no
mínimo: eu e eu mesma ( ehehe).Porém, reparo que quando se trata da escrita há o
mínimo do mínimo...como se, de fato, em algum momento fosse Um. Isso é complicado
e quase impossível já que o traço único é letra e sendo escrita, pensada ou falada já é
duas ou mais. Mas, repara que existe sim, uma solidão no ato de escrever. Concordas?
Como descreverias isso?

Pode não ser consensual, mas pela minha própria experiência, e pela forma como
encaro o “acto de escrita”, existe um momento em que a solidão na escrita é um
imperativo: a escrita, em si, é um acto solitário, a palavra “exige-nos” muito para
nos devolver tanto ou um pouco mais… mas não rejeito, de forma nenhuma, uma
outra forma de “acontecer a palavra”… essa é a minha forma, mas não a considero
universal e linear. Desconfio da forma rígida e metódica de escrever, do indivíduo
que convoca a assembleia da palavra para uma reunião das tantas às tantas, e fica
o problema resolvido; procuro um mínimo de ordem, mas de uma ordem equilibrada
entre a exigência e o caos. Tenho uma relação com a palavra, e nessa relação não
posso ser o único a ditar as regras da casa… “a inspiração” não tem horário ou
calendário, e a percepção que tenho do “meu tempo com a palavra” é semelhante
ao de qualquer outra relação… por vezes não estou disponível, inteiro, e noutras é a
palavra que “me nega”, não vem, mas tudo isso faz parte do equilíbrio da relação…
nem sempre há uma disponibilidade de parte a parte…

Mas voltando ao essencial da questão, à dicotomia escrita/solidão, não creio que haja
consensualidade, até porque estamos a falar de significados em constante mutação,
assim como os seus intérpretes, nós mesmos, que nos encontramo em permanente
tentação de interpretar conforme o “conforto” que as interpretações, nossas ou
alheias, nos trazem: dou um exemplo, Adriana… durante quanto tempo fez e ainda faz
parte do imaginário social que o poeta é um tipo que escreve com a caneta na mão e
com uma arma na outra, pronta a disparar? Não é aí que começa o “mito do poeta”, o
suicida em potência, o grande estereótipo do Grande Poeta? Não é aí que começa, no
fatalismo, na autodestruição, o mito do Grande Músico? Não será essa nossa relação
com os estereótipos, com a solidão do acto de escrita, com o poeta suicida, com o
pintor que corta orelhas, um tanto ou quanto precipitada, embora cómoda? Não será

pedir demais, ao artista, que se atire para debaixo do comboio em andamento, como
se fosse condição essencial para validar aquilo que exprime enquanto ser vivo, não
como mais uma “natureza morta”? Não será pedir demais aos que para serem apenas
artistas, simples artistas, poetas, pintores, músicos, que não é condição para “entrar
no céu”, a obrigatoriedade de ser grande, a urgência de ser bom, excelente, o maior
e por aí a fora?... Não será doentia essa necessidade de ser o melhor, ter um talento
desmesurado para ser validado o ser que é tão-somente e apenas… humano? Não é
suficiente o dom, o dom da partilha, o dom da entrega, o dom de receber o próprio dom
sem que se vá a correr ao editor mais próximo a pensar que vamos vender milhões, ser
o próximo Pessoa, ser famoso? E para sê-lo, a que preço?

A solidão como acto saudável e quando utilizado na proporção certa é, creio, o ponto
de equilíbrio entre o eu e o outro, o próprio ponto de contacto… como o silêncio, esse
grande maestro da grande orquestra da palavra, em toda a sua extensão. A solidão,
vejo-a como um “acto de tempo” necessário, um quase dever para com a escrita,
mas nunca uma obsessão doentia, uma obrigatoriedade que devora e limita. Mais
preocupante é, isso sim, a “solidão imposta” pela ausência dos que pensamos que nos
rodeiam e contudo… estamos sós, como tão bem imprimia Drummond no seu A Bruxa,
que “Nesta cidade do Rio/de dois milhões de habitantes/ estou sozinho no quarto/estou
sozinho na América./Estarei mesmo sozinho?”… essa solidão é terrível e para o bem
ou para o mal, vai sendo compensada com as redes sociais, com o mundo virtual que
se vai tornando a única família do solitário… e isso sim, é preocupante: o solitário
raramente quer estar só… o solitário, o mais das vezes foi abandonado pela presença,
ainda que seja “brutalmente” reclamado pelos que o rodeiam, mas o valor da relação
é cada vez mais residual, pois que exige apenas “o corpo presente”… e o ser humano
não foi programado para ser “solitário”, não acredito… basta olhar de perto para
o “solitário” que passa horas e horas, em frente ao computador, a comunicar… “a
comunicar”, e esse é o alimento do ser humano…

15- Barco e porto...Ser o que carrega e estar onde recebe. Há algo nisso que faz pensar
no encontro como possibilidade. Estando no mar, avistamos, sonhamos com a terra.
Estando na terra, a imensidão do mar. No trajeto portamos algo, uma esperança que
nos faz. Também o desejo para além do que alguma espécie de destino já diz o que é.
Pensei nas grande navegações, naquilo que não sabiam e que lhes causava desejo de
saber. Arrumar o barco, todos os dias, para percorrer um caminho, uma palavra, um
destino. Incerto como todos são. Os destinos...são dos portos ou dos barcos?

Essa resposta gostaria de descobrir, ou melhor, sendo uma dupla questão até se
responde por si, se não nos tentarem os lugares–comuns: há uma ideia generalizada
que o Português é um refém da saudade, dos “bons velhos tempos”, do “antigamente
é que era”… não é em vão essa conotação, embora seja redutora, porque não há um
Português, mas dez milhões de Portugueses, todos diferentes e por vezes… todos iguais.
Por outro lado, é denominador comum a vontade, o à vontade com que esse mesmo
Português lida com as tecnologias, como a ideia do “lá à frente”, estar sempre “à
frente”, com a obsessão da novidade, do “progresso pelo progresso”… o que “é novo
é que é bom”. O António Variações cantava muito bem esse estado de espírito que “nos
move”, no Estou Além, “Sempre esta sensação/Que estou a perder/Tenho pressa
de sair/ Quero sentir ao chegar/Vontade de partir/P'ra outro lugar/Vou continuar a
procurar/ o meu mundo, o meu lugar/ Porque até aqui eu só/ Estou bem/ Aonde não
estou/ Porque eu só estou bem/ Aonde eu não vou.”… e esta ambiguidade, esta forma
de estar condiciona-nos e faz de nós grandes poetas de naturezas mortas e artistas em

constante busca. E então do tempo, nem se fala… temos um livro e não temos “tempo”
para o ler, mas já estamos a planear comprar mais um ou dois; temos um computador e
já estamos de volta das novidades nos catálogos, dum novo, de nova geração, com mais
memória e uma montanha de aplicações que nunca se irão utilizar, mas são “boas”;
temos um filme para ver, mas estamos já a pensar nuns quantos que são novidade… e
podíamos ir por aí fora, nessa quase devoção à novidade, à nova tecnologia, ao novo
amigo no facebook, ao novo, novo, novo, tão extenuante que não deixa tempo para
apreciar o que vamos adquirindo, as experiências que “vamos vivendo” mas raramente
pensando, os amigos que “vamos fazendo” mas raramente lhes dedicamos o “nosso
tempo”, aos livros que “vamos comprando” e o mais das vezes “estão lá na estante”…
e assim vamos ficando reféns do passado, com “saudades do futuro”, sem poiso
certo mas confiantes no destino, no fado, esse jogo de sorte e de azar… são lugares-
comuns, e são os que temos, que aceitamos resignadamente, confiando que alguém faça
o “nosso trabalho”… andamos há oitocentos anos nisto e não é agora que vai mudar,
assim, sem mais nem menos, tão abruptamente.

Fomos educados a olhar com demasiada frequência, para o “outro”, para o “outro
lado”, para o “impossível”, a procurar no “vizinho” os nossos próprios defeitos,
e daí a propensão para nos tornamos peritos em assuntos menores e mesquinhos,
sem utilidade aparente… mas para além desse gene que herdei, que herdámos como
Portugueses comuns, ainda acredito que somos porto e barco, mar e ilha, um território
imenso onde nos podemos encontrar, partilhando o que se encontra, procurando;
acredito numa geração que vislumbro e que saberá como desfrutar o que faz, o que lê,
o que pinta, o que sente, uma geração que procure em si a primeira questão e resposta,
que procure em si o valor sentido, o peso da sua própria linguagem emocional
projectada para o mundo, mas passando por si própria, antes de tudo… é motivante
apreender no horizonte esse “corte”, essa ruptura com a “ausência necessária”, essa
não inscrição por questões de sobrevivência, e nesse particular, o escritor, o artista
poderá ter uma palavra a “inscrever” se não se remeter ao papel de bibelot, mero
adorno estético e desnecessário… não é fácil, mas quem disse que o poderia ser?

16-Gostarias de deixar registrada mais alguma coisa?

Naturalmente, que gostaria… ficaríamos aqui dias a olhar para esse mar, falando,
trocando de emoções, trocando de palavras, trocando, dando e recebendo. Mas já o sol
se põe, e a maré está de mudança e interpretemos isso como um sinal…

Recupero, umas palavras que ficaram noutras marés e tão bem aqui cabem: “Todo o
furacão de emoções que me tem avassalado nos últimos tempos, e um reconhecimento
que “desconfiaria” noutras circunstâncias, ainda que soubesse como caminhar sobre
as águas sem me molhar, tem sido uma das provas mais gratificantes da minha vida,
mas com a ressalva que não “quero ser engolido” por sombras ou ilusões; sei que os
dons devem ser partilhados e os méritos só podem ser reconhecidos por outrém, mas da
mesma forma que tudo o que partilho por prazer, da mesma forma posso partir, quando
essa força, esse prazer, esse “dom”e me faltar… escritor é para escrever, como ao
artista de teatro pertence o palco.” E assim sendo, ao trabalho, A Lavoro!

E deixo, agora, sempre, um Abraço que faça corar de vergonha os tamanhos desse mar
que nos separa, Adriana, um Abracimenso!

Leonardo,sinto-me emocionada por ter estado contigo nesta pequena entrevista.Sinto-
me assim por senti-lo tão próximo, embora estejamos longe de doer; pela tua palavra
que me traz todas as águas, como concha que compartilhas connosco. Neste eco me
fazes escrever mais, numa confusão de espaços em que quero ser porto e barco, para te
receber ou te portar. São para sempre bem vindas tuas indecentes palavras, pela verdade
dos amantes além mar.

Beijo com todas as letras

Adriana bandeira

Leonardo B., poeta português-http://abarcadosamantes.blogspot.com/

9 comentários:

  1. Belíssima e rica entrevista. O Leonardo B. é um poeta de primeira linha que merece essa e mais entrevistas...Foi bom conhecê-lo melhor, deu pra confirmar o que já pensava a respeito dele. Parabéns ao entrevistado e à entrevistadora.

    Adriana Godoy

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  2. Excelente trabalho!
    Apenas uma primeira impressão, imediata após a leitura, pois que pretendo reler outras vezes mais.

    Conhecer um pouco mais desse poeta, amante barqueiro, incondicional amigo que tanto admiro e da habilidosa Adriana, a vencerem distâncias, tornando alguns instantes até "intimistas" numa maravilha de entrevista!

    Gostei muito! Parabéns aos dois.

    Carinhoso abraço, Adriana!

    Marlene

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  3. Seria tão bom um mundo cheio de palavras tão indecentes como estas.
    O entrevistado já conheço um pouco a poesia e gostei de "ouvir" a prosa numa entrevista bem conduzida e agradável.
    beijos

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  4. A Barca Dos Amantes já faz parte do meu dia a dia , o Leonardo é um escritor e poeta fantástico, entrarei na festa quando um poema de amor.

    Abraço.

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  5. Da palavra à poesia, cá estou emocionada, e com muitas ideias zanzando pela leitura desta entrevista... parabéns Leonardo e Adriana, momentos assim nos ampliam sempre, pois no fazer de outros pecebemos os passos de nossos desejos.

    Beijos.

    Carmen.

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  6. Adriana, teu blog está cada vez mais interessante, diverso e instigante. Imita tua obra. Criadora e criaturas em sintonia, ou na doce falta de, que toca e provoca. Gostei demais da entreista, e do presente, de Leonardo. Parabéns! Um grande beijo.

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  7. Oscar!
    bem vindo em indecentes palavras!venha mais vezes!
    beijo grande
    adriana bandeira

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  8. Querida Carmen!
    Tuas palavras sempre me incentivam.Isso continua,isso não pára de não passar.
    beijo grande e gradeço muito,muito,muito...o comentário.

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  9. Amigos que já conheciam a letra de Leonardo!sejam bem vindo a este humilde e singelo ...também barco, que por reconhecimento, pelo que o mar nos dá...sei lá...vivifica-se a cada nova voz que aqui, se faz.Venham sempre! Fico honrada com suas visitas.
    beijo grande
    adriana banderia

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