domingo, dezembro 19, 2010

AMOR DE ESCREVER O NOME - entrevista com Jorge Rein

1-Tive contato com teu texto, pela primeira vez, ao ler Contos de Abandono, coletânea que participamos juntos, de onde passamos a trocar emails.Surpreendeu-me a verdade com que fazias algumas transposições de palavra-cena,dramaturgo que és, sem perder o texto.É como se a cena seguisse em continuação da palavra e isto é a verdade.Pois bem...se concordas com esta minha  impressão, poderias dizer um pouco sobre tua forma de pensar o texto para teatro?
 R- Cheguei ao texto teatral quase por acidente, na pretensão de contar uma história que excedia os limites do conto, que tinha sido, até aquele momento, o caminho em que fazia andar as minhas narrativas. Talvez venha daí a sujeição dos meus textos dramáticos aos moldes de outras literaturas. Na ausência de estudos formais ou mesmo de interesse em conhecer a fundo as técnicas da carpintaria teatral na sua versão escrita, optei por descrever apenas a magia sem a preocupação de dominar os truques. Meu teatro é mais intuitivo do que teórico, e um tanto obsessivo nas rubricas, território em que abusa da subjetividade na tentativa de comunicação mais direta e profunda com a sensibilidade do eventual diretor ou do ator em potencial. Escrevo como se a leitura do texto fosse o objetivo, assim como acontece em outros gêneros. No teatro, porém, a publicação é uma etapa intermediária. O objetivo final é o da encenação, que altera o texto ao emprestar-lhe não só outras leituras, mas também outras escritas. Não sou ciumento em relação a isso. A encenação é uma obra coletiva, um processo em que algo se perde, algo se ganha e tudo se transforma.    

2-Há pouco tempo assisti teu texto sendo lido por excelentes atrizes. Nele trazia Marie numa fala sobre seu homem e suas incertezas.Causou-me emoção ao perceber nos dizeres  as de tantas vozes do feminino que perguntam-se sobre o “ lugar mulher”.Lembro que a fala de Marie, esposa de um homem que se deixou “ estudar” pela ciência( faz xixi somente nos potes capturados pelo médico, só come ervilhas, e outras obediências ) circula entre a prostituta, a mãe e a esposa.”Queria meu homem de volta...mas meu homem é do patrão”.Neste sentido Marie vem dizer sobre esta condição das mulheres de serem...de quem mesmo?Hoje mais do que nunca os homens são do patrão, de várias formas: patrão capital, patrão pobreza, patrão carro do ano, patrão política, patrão ciência, etc ... E as mulheres...também? Como inventaste Marie e sua fala?Como vês esta questão do pertencimento para homens e mulheres?

R – Marie pretende ser um resgate da visão feminina em Woyzeck, a obra clássica de Georg Büchner. É possível que seja a novidade formal que esta peça inacabada representou na dramaturgia da sua época que tenha garantido o fenômeno da sua permanência. Mas também é preciso reconhecer em Büchner o mérito de ter sido um precursor ao levar a um teatro burguês, ainda nem totalmente livre de um ranço aristocrático, o universo dos despossuídos, dos sem voz, dos humilhados. Nesta obra ele identifica alguns dos mecanismos que possibilitam o exercício dessa humilhação: a hierarquia militar, a petulância às vezes imoral ou antiética dos falsos próceres da ciência, as convenções sociais, as etiquetas, a corrupção social e política em todas as esferas, e até mesmo a igreja. São essas as instâncias em que o poder se expressa, vigentes até hoje com mais alguns acréscimos de globalização, moda, consumo, propriedade dos meios de comunicação, etc.  É contra essa estrutura que Marie se revolta. É essa a situação que ela não aceita.  Não a incomoda o fato de pertencer a um homem, prática que o casamento recomendava na época, mas não suporta assistir impassível à degradação do seu marido, que perde a dignidade e a condição humana em nome de uns trocados que possam garantir seu papel de provedor.  Ao vender o seu corpo Marie não está à procura de outro lucro que não seja o de cutucar a indolência do cônjuge através daquilo que ela mesma considera a humilhação suprema, porque acredita ser a última chance de redenção de Woyzeck. Sua própria imolação é o meio que ela encontra para recuperar a dignidade daquele homem, obrigando-o a cometer um ato que a sociedade aprova e que a justiça raramente condena.  Não é o tipo de heroísmo que eu pessoalmente recomende.  Não tentem fazer em casa.

3-Ainda falando de Marie... Ao escutar teu texto definitivamente tive certeza de que a escrita não é definida por um sexo.Quero dizer que tu enquanto homem terias uma “ fala feminina”.Como pensas esta questão do gênero na escrita?

R – Existem inegáveis diferenças anatômicas entre homens e mulheres.  E é bom aproveitá-las.  Porém, quando invadimos o território da criação artística, a sensibilidade fala mais alto do que hormônios e glândulas.  E a sensibilidade pode ter sua porção inata, mas obedece mais a imposições sociais em que é (des)educada.  Desde o “homem não chora” até “a mulher é o sexo frágil” nos vendem a ilusão condicionada de que devem ser diferenciadas, por gênero, não apenas as falas, mas também sentimentos, funções ou temáticas.  Não acredito numa literatura feminina e outra masculina no estilo dos banheiros de qualquer local público. Desconfio dos preconceitos das proibições de entrada. É possível produzir, sempre que não se fuja a um certo nível de cumplicidade com o sexo oposto e se deixem fluir as sintonias humanas, escritas que não obedeçam à estrita correspondência das gônadas. O artista às vezes é o ventríloquo, às vezes é o boneco ou a boneca que fala.  Não me deixam mentir, entre outras provas, algumas das melhores canções de Chico Buarque de Holanda.

4-Assisti esta leitura no teatro de Arena.O teatro de Arena é conhecido por ter abrigado toda a fala artista de subversão aos ditames de determinada época.Subversivo é o inconsciente que nos habita e vem falar o que não deveria.Tens alguma história com este espaço físico,teatro de Arena, ou com este espaço subjetivo da falar o que não deve?

R – Cheguei ao Brasil em 1971. O Teatro de Arena era ainda uma criança. Rebelde, mas com causa.  A tradição de ser um foco de resistência já era sua marca registrada. Com exceção de esporádicos episódios de censura sofridos ainda no Uruguai, meu prejuízo maior foi como espectador, como ouvinte e leitor impedido de ter acesso aos produtos culturais que a ditadura barrava.  Eu mal engatinhava na língua portuguesa naquela época e, por esse motivo, a minha incipiente produção dispensava as tesouras alheias. Os meus textos eu mesmo censurava. E não sobrava nada. Hoje em dia sou bem mais tolerante e falo o que não devo com a maior das naturalidades.

5-(eheheh )...Vou falar... Falando sério, estamos num trabalho a quatro mãos já faz algum tempo.Um texto erótico em que damos continuidade a dois personagens numa troca amorosa, seus encontros enquanto amantes.Eu nunca havia escrito estas coisas .É a minha primeira vez,deixo claro!( ehehehehehe) É possível que venhamos a publicar...quem sabe!Como está sendo esta experiência para ti?O que mais te encanta nesta experiência?

R –Não era segredo, Adriana? Essa história do WikiLeaks está também pegando no teu blogue? Falando (quase) sério, então.  Não sou, no texto erótico, um marinheiro de primeira viagem, mas sim na construção em parceria. E devo confessar que é bem mais agradável que se virar sozinho, o que não é novidade. Não sei no que vai dar, se é que vai dar um dia, em termos de matéria publicável, mas caminhar contigo na aventura virtual das (des)cobertas tem sido um exercício fascinante.  Sempre que algum artista se equilibra no fio escorregadio da sensualidade, o risco que se corre é o de descambar na gratuidade da pornografia. Considerando que a fronteira entre esse dois terrenos costuma apresentar-se como uma linha sutil e subjetiva, o jeito é relaxar, deixar que o texto flua na criação natural do próprio clima. Isso me dá um prazer que imagino recíproco. Se for pornografia, pelo menos que não seja gratuita. Vamos cobrar por isso, minha amiga.      

6-Quando começamos a troca de emails como amigos me despedi com o simpático: bj.Tu, na mesma hora escreveste:” Adriana, beijo se dá e se escreve com todas as letras!”Isso fez uma marca interessante.Não tenho mais como esquecer disto: beijar e escrever com todas as letras!Tanto que é esta a tua marca neste humilde blogue ( eheheheh).Brinco que se trata de AMOR DE ESCREVER O NOME...É comum situarmos, nos dias de hoje, uma certa abreviação da vida que, não raro, aparece registrado na escrita.Há uma pressa de capturar sabe-se lá o quê.Pois bem...como tu percebes isto?

R – Toda linguagem é, na sua funcionalidade, apenas uma ferramenta de comunicação. Para que essa transmissão de conteúdos aconteça, basta que o emissor e o receptor da mensagem sejam usuários de um código em comum. As línguas se dividem em duas categorias: dinâmicas e mortas. Por isso não sou contra a incorporação de novos termos, o desuso de outros que sofrem de obsolescência ou a alteração dos significados em função de novas exigências. Mas a língua também é identidade (no meu caso, por causa do sotaque, identidade secreta). Faz parte do meu jeito brincar com as palavras e não percebo nisso um desrespeito a uma norma sagrada. Acho que o que me incomoda, no jargão cibernético, é justamente essa presa de abreviar as palavras para dizer mais de algo que às vezes muito pouco interessa.  Já na literatura, pratico e aprecio as narrativas breves, mas teimo em separar joio –ou joias– do trigo, degustação de fast-food literário. Com relação ao bj talvez seja a mais pura implicância. É que a imagem que surge em minha mente, ao topar com essa fórmula, é a de duas dondocas se encontrando numa loja elegante, encostando suas faces e estalando os seus lábios no ar. Isso é bj. O que eu chamo de beijo é outra coisa. Se for isso, dispenso.

7-Falando de...&.Quando li & pela primeira vez achei divertidíssimo.Na minha visão estreita que via teoria em tudo, pensei  no objeto “a” de Lacan como este tal &, representando tão bem.Quando li pela segunda vez, me perdi e pensei nas várias falas do cotidiano, nos detalhes da vida que são as marcas de fato.Quando li pela terceira vez percebi toda a dor da vida, do sexo, do silêncio, da maternidade, da violência...Ainda não li pela quarta vez.Quem sabe o que ainda vem...Concluo, sem concluir, que & é tudo isto e ainda mais.Assim,situo tua escrita como de inscrição.Quero dizer que ela é sempre outra, pronta para desvelar tantos outros eus e palavras que habitam a todos.Por favor ,( eeheheheh) responda-me: o que é & para ti?

R – &  foi o tour de force da minha vida, por motivos diversos que hoje não se aplicariam. Eu vinha de alguns anos de um silêncio provocado pela necessidade de mudança de idioma –identidade incluída- para as minhas escritas, lendo muito e ouvindo mais ainda na pretensão de que a estreia não sofresse dos vícios de um sotaque que me denunciaria.  O saldo de um aurelião despedaçado, que conservo como uma relíquia, é prova de que a luta foi renhida. Ao mesmo tempo, a produção da obra, nos aspectos formais, me exigia um trabalho de artesanato ou de ourivesaria na feitura das fichas de leitura, na mesma quantidade das cartas de um baralho, todas elas com idêntico número de linhas, e ainda um que outro arroubo quase que concretista no verso ou no universo de alguma dessas fichas. A oitava maravilha dos computadores de uso doméstico ainda não existia e a primeira versão de & foi manuscrita, letra de imprensa em folhas quadriculadas, na razão de uma letra por casinha. Todo esse tempo o texto em gestação fermentava e adquiria novas significâncias, camadas palimpsestas que o leitor mais atento desvenda nas leituras sucessivas, ou que ele mesmo cria.  Não sei se vale a pena procurar dentro de & os ecos mais umbertos da obra aberta ou o lacaniano objeto das ausências. Gosto de imaginar que o conteúdo da caixinha de & é um espelho. Mas certamente isso é pretensão minha.   

8-Jorge, quais os trabalhos que podes citar que te trouxeram grande prazer em fazer?

R – É mais comum o alívio, a sensação de um peso que transfiro, a expulsão dos fantasmas dos porões, algo que me liberta. De prazer mesmo essa louca aventura que estamos cometendo e um história infantil que escrevi em homenagem à minha neta.

9-É verdade que depois de & me autorizei a fazer poesia .Tenho teu texto como sendo poesia, embora te digas “ dramaturgo”.O que é arte?O que é poesia?

R – Eu sou muito inconstante. Sempre ando apaixonado por alguma nova definição de arte com a qual tropecei no meio do caminho, como se fosse pedra.  Aí vai a mais recente: “Quando algo corrompe a natureza da acomodação e sacode nossa falha razão, estamos diante da Arte”. É de Adriana Bandeira. A poesia, por sua vez, é o resumo da ópera. É ela que sustenta não só a literatura, também todas as outras formas de expressão artística. É só ela que autoriza sintonias de fruição, de emoção, de partilha, de um ser e de um sentir inexplicáveis. Raramente elaboro um poema formal. Não estou me referindo a uma questão de ritmos, melodias, rimas ou métricas, mas ao sentido estrito de um formato peculiar da mancha gráfica impressa na página. Ao mesmo tempo, suponho que há poesia em tudo o que eu escrevo. Ou é isso que almejo.

10-Voltando ao primeiro café juntos... surpreendeu-me tua resistência: “ não quero te conhecer”, foi o que me disseste!Falamos em troca de sobrenomes, em troca de livros...pois bem, como sentes esta questão do “ conhecer o outro”?

R – Realmente fica um pouco difícil convencer alguém a não levar uma declaração dessas para o lado pessoal. Na verdade, pretendia ser um elogio ao teu trabalho como escritora. Quando a obra de um artista me impressiona, é aí que não faço questão de conhecer o criador pessoalmente. É uma espécie de fobia solidamente sustentada em experiências prévias de desastrosas decepções. Não adianta me torturar, que não vou citar nomes. Acredito que ficou suficientemente claro, na continuidade da nossa amizade, que foste uma das raras exceções que confirmam a regra. Não me arrependo de ter te conhecido. Agora que provei, eu quero é mais.    

11-Gostaria de deixar registrada mais alguma coisa?

R –  Acho que me excedi nessa tendência à verborragia. Ficou longa a entrevista. Te autorizo a cortar o que achares demais. Beijo sim, bj não!
Agradeço pela  verdade esculpida,denúncia contida,pelo amor que fez nascer em mim ;por estar conversando conosco, por aqui.E...queremos saber quando vens com Alice para conhecer nossa Estação da Cultura!
R – Logo no primeiro trem.
Beijo com todas as letras!
Jorge Rein é dramatugo,escritor.Vencedor de alguns prêmios pelo seus textos encenados.

2 comentários:

  1. E no beijo com todas as letras está o desejo da Arte de Ser... Jorge é um excelente dramaturgo, um grande Poeta e tu Adriana uma entrevistadora perfeita, arrancas as emoções vitais que nos prendem à leitura além da curiosidade.

    Parabéns aos dois, parabéns a este espaço que vem forte para seguirmos conVersando sempre com muita Poesia.

    "Marie pretende ser um resgate da visão feminina em Woyzeck, a obra clássica de Georg Büchner." E é! Que ela siga fazendo Voz em nossos teatros em 2011, bem agora me falta comprar o & para seguir me encontrando com a Arte de Jorge...

    Aos dois um beijo amigo e carinhoso.

    Carmen Silvia Presotto
    www.vidraguas.com.br

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  2. Olá Adriana. Primeiramente parabéns pela entrevista,amei a descontração e foco.
    Sou estudante do curso de Licenciatura em Teatro do IFCE em Fortaleza, e estou em um momento muito especial com a minha turma. Creio que vá ser de grande valia o contato de Jorge Rein para nossos estudos. Como faço para conseguir o contato dele. Por favor entre em contato comigo por e-mail: yasmin_elica@hotmail.com
    Beijos* com todas as letras.

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