Freud e José
...Então não sabem nem ler e escrever... Eu? Bem, ando a cata da qualidade disto, quero dizer, de não isso, deste volume de coisas que se agiganta quando deitam na primeira voz. O que imagino, doutor Sigmund é que desejam mas ...desejam tantas coisas! Isso aprendi desde cedo. Existem muitas e muitas... palavras.
É, a dor de estar alheio nunca foi tão desperta assim. Mas o escape, a impaciência dita em desavenças rende alguns silêncios.Costumava brincar com o cachorro mas as crianças não são tão dóceis com eles.Nem mesmo eu. Ah!Como? Não... quero dizer que por mais que me dedique e me esconda em latidos para estar próximo, a ele nada supera sua vida de cão.
Hoje sinto frio de gente, de notícias. Aguento em vidros, como poderia dizer. É, vidros... aquilo que a cada momento quebra-se no chão dos pés, mesmo que seja somente no pensamento.
Esta manhã, por exemplo, lembrei-me dos cânticos, das músicas, dos ensinamentos religiosos. Lembrei-me de Jesus e do quanto inventam coisas. Ora! Jesus nascido de uma virgem? Sem pressa desfio o rosário, porque esta é uma palavra bonita: “rosário”. Deslizo com as mãos... as mesmas de Augusta, quando tive a ver o que seria o ser da mulher.
Nunca aprendi sobre tudo. Nem sei sobre os termos que se poderia. Ah!Uma palavra que não existe ainda. As mulheres, ou melhor, Augusta era rosário.De madrepérolas pela virgem, pela madre, pela raridade que me fiz em ser outro.
Não! Nada de mães, doutor Sigmund. A minha não poderia estar. Era de mim a mais linda de se ler, se soubesse escrever.
De fato Jesus é crucificado no que significa, naquilo que gruda de verdade. A cada coisa esquisita a verdade contida dispara subversiva, invasiva e amiga.É o espírito das coisas, doutor Freud. O espírito das coisas!
Rosário e, ainda, Anunciação. E este era mesmo o nome, todas com A. Ela, erguia sua presença num manto sagrado, renunciando aos feitiços que as tais maquiagens podem fazer. Era a do mercado, dos lagostins. Vinha da praia, disfarçada de gente e, por deus! Eu era um Homem peixe. Sereia, doutor....elas existem.Trazia os peixes do mar, os pequenos em cestas. O tal manto encobria seus olhos verdes e o cabelo que alisava seus quadris até as coxas. Apenas uma vez falou.E se fosse de dizer , certamente, diria todas as coisas do mundo em apenas uma voz. Perguntou-me as horas e, disfarçado, escondendo minha cauda que emergia por sobre o casaco, respondi-lhe serenamente que era hora de estar comigo. Nada disse. Apenas arrastou-me ao seu habitat natural, suas esferas entre a areia e o sal, a brisa primeira que inventou o mar.
Ora doutor...acho que não era analfabeta...acho que nada tem a ver com minha mãe!Tenho apenas 16 anos, doutor Sigmund!... Talvez com o pai. Sempre pensei que ele pudesse, vez ou outra, ser um peixe. Isto tranqüilizou-me quando voltei da praia com a leve sensação de nunca mais.Uma espécie de descrença ou esperança que, ao bem da balança é quase a mesma verdade.Depois do mar todo, da mulher e das palavras que nunca vou dizer, vim neste pensamento, se morro ou arrebento em cada próxima vez. Não calar ou dizer, escrever e me ler. Morrer e nadar. E nadar... e morrer.
Ah!Sim doutor Sigmund... Mas por que motivo se despede assim? Mas todo o final da sessão deve ser desta forma?
Um silêncio de voz carece cuidado. A delícia do olhar diz do outro lado:
- Adeus, José. Nadar!
-Até quando doutor? Até quando?
-Para sempre, até a próxima primeira vez. A propósito... para meus arquivos: qual seu sobrenome?
-Saramago, doutor Freud!...Saramago... Até mais!
(Adriana BAndeira)
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