domingo, dezembro 26, 2010

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER- Uma noite em Buenos Aires com Carlos Karnas


1 - Olha só Carlos... acabei de me dar conta de que te conheci num quarto com divã (eheheheh). Explico: ganhei teu livro “Um quarto de mil” de presente, com uma indicação de que provavelmente gostaria. Comecei a ler e não parei mais... Mas, esta forma peculiar que tive contato com teu texto faz com que eu pergunte: o que tu tens a dizer sobre a psicanálise?
Que coisa, hein? Presentearam-te com feito meu e me conheceste em quarto com divã? Caramba! Não sabia disso, do local agora revelado. Parece-me maravilhoso! O que haverá de verossímil entre o fato (ato) e o meu "Um Quarto de Mil"? Daqui poderemos viajar por significados e significantes; pelo real, simbólico e imaginário até o 'corte', para utilizarmos termos psicanalíticos, não é mesmo? E como assim? - talvez seja a hora de perguntar. E o que eu tenho a dizer sobre a psicanálise? Simples: nada ou quase nada. Faço ficção. O meu descomprometido envolvimento com seres psicanalistas me fez observar que eles são tão comuns mortais e frágeis. E sacanas. Por vezes diferem tanto do ofício que praticam que o comprometem. Já os presenciei insossos, desinteressantes, medrosos e arrogantes Já percebi os que transam mal e as suas manias incríveis. Duvido do amor que muitos pregam. Entretanto carregam, conservam e sustentam um discurso. Diz-se um saber. Mais: têm o privilégio de saber das aflições, angústias, temores e a negritude da alma do analisando que quer dar conta da falta ou encontrar a saída para o seu impasse. Tudo e todos fazem 'sintoma'. Então, da psicanálise, endeusada por analista e pelo analisando, faço-a um fetiche ficcional. Nunca me deitei no divã, não me deitarei para análise. No divã penso em outras coisas prazerosas para o corpo e para a alma, mesmo que ele seja estreito. Ouço, os outros, falarem. Não procuro leitura sobre a psicanálise, mas não a desprezo quando surge. Imagino e crio diante do que ouço e leio. Provavelmente traduza o que surge de almas. Lembro do título “Escolha”, um dos meus contos do livro “Um Quarto de Mil”. Sugiro-te a releitura e que o (a) nosso (a) leitor (a) de agora o leia também. Provavelmente eu seja metafórico. Engraçado (ou gozo, gozado)! Ao receber essas tuas perguntas para respondê-las, sabes o que me veio à mente? Algo banal, mas melodioso, a letra de uma música de Nando Reis: “(...) Por onde andei, / enquanto você me procurava, / será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava? / Agora eu sinto a sua falta / e a falta é a morte da esperança, / como em dia que roubaram o seu carro / deixou uma lembrança. / Que a vida é mesmo coisa muito frágil, / uma bobagem, uma irrelevância, / diante da eternidade / o amor de quem se ama.” Joga isso para onde quiseres: canta, brinca, manipula, despreza. É psicanálise? Apenas um escrito? Palavras? Uma declaração? Uma canção? Algo mais? O quê? Eu me divirto e dou risadas com a mais de dúzia interpretações que vou estabelecendo agora na minha vertente. Então proponho para ti e leitores que também se soltem nessa vereda, com graça, leveza e pensar. Sem deduções. Não sofro o suficiente à ponto de abraçar ou ser abraçado pela psicanálise. Questiono-me, sim, incessante e insistentemente. Mas, na psicanálise, que é a dos outros e a de cada um, recolho belas histórias, alegres e sofridas. Na ficção se trabalha melhor a verdade.

2 - Também sobre ‘Um quarto de mil”, não reparei logo sobre tua proposta de escrever contos com, exatamente, 250 palavras. Poderia falar um pouco disto, de onde veio esta idéia?
Está lá em “Gênese”, o conto que inaugura o “Um Quarto de Mil”. Alguém pede ao porteiro um quarto de mil. Outro, o que está atrás do balcão, olha atônito aquele pedinte, nada diz e lhe alcança uma chave. O pedinte a pega, paga e se desfaz. “Afinal, que lugar é esse?” Está lá escrito. Serei eu ou o personagem quem pergunta? Quanto a mim, pessoa, talvez eu seja irrelevante, de existir limitado no permanente e interminável exercício de realizar coisas inconsequentes. Por isso desencavo dignidades assim como os meus próprios personagens. Produzo textos, contos com as imagens que capto, com os cotidianos lembrados, as alucinações, fantasias e tentativas experimentais com as palavras. A partir da leitura de muitos escritores e contistas, imaginei tentar algo diferente para mim. Os meus escritos ficcionais e intimistas, sonhados e experimentados, são cenas e fotografias humanas, são fantasias e intempéries as quais estabelecem as delícias e os conflitos dos amantes na penumbra e no fulgor de cosmologia aberta ou fechada. E onde acontece, o gemido da dor e do prazer? O momento de simplesmente cerrar as pálpebras? Mais propriamente em alcovas, onde o pensamento mais instigante permeia todo o resto que poderá fermentar no breu. Quarto, o ambiente, é intimidade e revelação, ao mesmo tempo templo de se praticar e conviver com o que se quer. Quarto é compartimento e nave. Pois então, por que não estabelecer aquela aliança simbólica entre o ambiente, os temas dos escritos e as personagens, num formato igualmente compartimentado de textos com exatas 250 palavras? “Um Quarto de Mil”. Essa ideia vingou na minha cabeça como uma marca e diferença para eu me lançar como escritor. Persegui isso com afinco, aplicação, alegria e sofrimento. Consegui a minha fórmula interior, talvez intelectual. Assim estabeleci um regramento à minha produção, ao meu desconhecido estilo de escrever. Pratiquei a exatidão com disciplina para estabelecer a marca que, agora, ninguém mais poderá me tirar. Ela é única, universal. Não existe na literatura o que criei e atingi. Enfim, a minha diferença e o meu diferencial. Sacrifiquei muitas histórias para elas se conterem em 250 palavras. Isso resultou num advento para o leitor: textos compactos, rápidos e fáceis de ler, mas com o impulso de se pensar no que está escrito, em se pensar mil coisas. Em 250 palavras há conto, que poderá ser romance, peça de teatro, sinopse de filme. Não te parece assim o meu “Um Quarto de Mil”? Penso que produzi contos ficcionais breves para o imaginário do leitor fluir. Quem não o leu, experimente-o.

3 - Teu texto é encantador. Retrata uma época, um tempo e os traços das relações pessoais. Num dos contos falavas das lacanianas e do quanto não aceitavam dividir seu divã com ninguém mais (eheheheh). A preocupação com esta idéia me custou uma protelação na minha vidinha (ehehehe). Pois bem, pergunto: o que você acha que mudou na forma das pessoas se relacionarem?
Êta perguntinha capciosa. Fico surpreso ao saber que um conto meu possa ter influenciado na protelação de algo da tua “vidinha”, como dizes. Que coisa, hein! A psicanálise não fala do mal-estar da cultura? Olha, eu nada sei sobre isso. Considero-me ingênuo e desqualificado para falar desse tema. Eu apenas observo comportamentos nas pessoas, nos casais. Tu citas um dos meus contos envolvendo psicanalistas lacanianas. “Leonina” é o título. Sei que muitas estão putas comigo. As lacanianas, especialmente, me surpreendem sempre. Percebo que não conseguem ser no real aquilo que elas mesmas discursam ou gostariam ser. Há dicotomia entre o discurso e a prática delas. Entre querer ser e praticar, as e os lacanianos que conheço se traem. Divirto-me com isso. Mas, sim, os relacionamentos das pessoas mudam, constantemente mudam. Vivemos tempos de exigências e não nos damos conta que exigimos cada vez mais. Estamos pouco tolerantes e a cumplicidade, me parece, é efêmera, está abandonada, esquecida ou se tornando desconhecida no semântico. Há fundamentações passadas e históricas que eram parâmetros nas relações. Mudaram, continuam mudando. Estabelecem-se os estorvos, os incômodos, os dissabores nos relacionamentos dos homens e mulheres, machos e fêmeas. Liberações, independências, autonomias e novas posturas se estabeleceram para o afloramento de muitos desejos. Parece que homens e mulheres (até elas) disputam virilidades permanentemente (viril = relativo ao homem, objeto das mulheres). Isso também acontece entre gays e lésbicas, apesar de entender que no homossexualismo os relacionamentos podem atingir graus extremados, em tudo (Esse universo está presente em muitos dos meus contos). Provavelmente estejamos vivendo confrontos de um novo aprendizado, com volúpia, pouca harmonia e muita angústia. Como escrevi em “Contornos”, um personagem desabafa: Acontece que de tempos em tempos me canso de ser homem. E me canso do meu rosto, dos meus olhos, cabelos, do meu corpo, do que vejo, da minha sombra. A fantasia me invade e me liberta, por pouco tempo. Ela é simbólica. Certas noites, sozinho, penso nela. Certas noites, sozinha, talvez ela pense em mim. Certas noites, se isso acontece ao mesmo tempo, nos relacionamos sem saber. Eu mesmo estou me dizendo isso. Que coisa, não é mesmo? Por isso me esforço em buscar nesgas compreensíveis na alma feminina, para mim e para aquilo que escrevo. Mas é difícil. O que quer uma mulher? Ela existe? Ah, essas e suas inconstâncias! Pois os meus contos do “Um Quarto de Mil” estão recheados de personagens inconstantes em cenários igualmente inconstantes. As intermitências humanas. Tentei estabelecer algumas inquietações sobre o gozo feminino e algumas desqualificações impostas aos homens. Nem sei se cheguei perto disso. Tanto é que fiz uma introdução – talvez filosófica neste meu livro. Escrevi: “E se forem esqueletos as minhas palavras? Não importa, te provei que ainda sou o que sou, depois de tantos anos. Meu coração, adocicado e rebelde, é acariciado pelo perfume de jardim existencial que o acolhe. Nele, convive com as artimanhas da vida. Persistente, ele te faz companhia ao seguires o teu destino.”

4 - Tu ou você? Pergunto porque és aqui do sul e moras, atualmente, em São Paulo. Poderias compartilhar conosco um pouquinho da tua história de vida? Tudo, tudinhooo não, somente um quarto de mil (eheheheh).
Há um romance meu, inconcluso, em que o personagem se defronta exatamente com essa questão: tu ou você. Há mais de um quarto de século longe da minha terra, Porto Alegre, de repente descobri que tinha perdido um pouco, ou muito, da minha identidade sulina. Isso me fez mal. Passei então a me desdobrar em falar ‘você’ no ambiente de convivência local, mas a praticar o ‘tu’ na linguagem escrita. Ultimamente tenho estado mais assiduamente no sul e aí percebi que tenho dificuldades de falar como gaúcho. Faço esforço para resguardar minhas raízes e a reentonar característica peculiar da fala gaúcha. O sul, o meu estado e a minha cidade me fazem falta. Cansei de vagar por terras estranhas e de estar tanto tempo em São Paulo. Tomei a decisão de voltar. É no sul, na minha terra que quero viver, morrer e então seguir para o céu de Aldebarán. No chão da minha origem tudo me encanta, me comove e me induz. Lá respiro e solfejo, vejo encantamentos, belezas e prazeres. Saí da minha terra sentindo-me um proscrito. Vivi todos esses anos como renegado, excluso. Minha formação profissional e acadêmica está no jornalismo. Contabilizo que exerci o bom combate por onde andei. Vivenciei períodos e cenas históricas e a minha participação, postura e atitudes me remeteram a ser personagem citado em alguns livros e obras de jornalistas escritores amigos meus. Citado e presente em narrativas generosas desses autores, um belo dia alguém me fez a pergunta que começou a ser repetida por outros e outros: “Quando vais escrever e publicar o teu livro?” Escamoteei-me do jornalismo e parti para a ficção. É onde estou. E contando verdades, e empregando a palavra ‘tu’.

5 - No nosso primeiro encontro nos reconhecemos em função dos vários emails trocados. Paguei o café prometido (ehehehe) que, se não me engano, foi no Margs. Neste encontro falavas da saudade aqui do sul. Como é viver em São Paulo? Como vês a tua terra, assim de outro lugar?
Não estás enganada, Adriana. Foi no MARGS o café pago por ti depois da nossa conversa em tarde fria na cúpula da Casa de Cultura Mário Quintana. O cenário do Guaíba, estar no local que conheci quando Hotel Majestic, as pessoas, a cultura, a vida e as belezas daí, a civilidade gaúcha e os meus próprios sentimentos me impelem fortemente voltar ao sul o mais breve possível. O trabalho e a minha atividade profissional me fizeram abandonar o sul. Mas, saí daí sabendo que algo deixava, que alguma coisa não estava na minha bagagem para as andanças que pratiquei por tantos anos. Família, profissão, tudo se reformatou em novas paragens, não o meu sentimento. Ele ficou amortecido e ganhei idade, tempo suficiente para saber que não sou feliz longe de Porto Alegre. É nessa cidade que tenho a minha origem, a minha história alegre, onde estão as pessoas amigas e companheiros que amo. É nessa cidade que sinto a vida pulsar, presencio pequenas singelezas e delicadezas difíceis de serem encontradas em outros lugares. Não importa. Minha identidade está em Porto Alegre. Penso que São Paulo me ganhou, me usou, fiz por São Paulo, mas nada mais tenho ou levo daqui. Cosmopolita eu aqui virei eremita. Vivo num sítio no interior. A cidade onde vivo me homenageia, é pacata, quase histórica. Mas o meu coração continua no sul, não tem jeito. Comecei a fazer incursões periódicas a Porto Alegre há pouco tempo. Descobri que perdi essência existencial por estar longe dela. Já morri demais.

6 - O texto, o traço do escritor é único. Um estilo que assina sua produção. Porém, no meu entendimento, os lugares de onde escreves são diferenciados. Por exemplo, como jornalista ou como escritor de contos. O que pensas sobre isto?
Sabes de uma coisa? Eu não me considero mais jornalista. Sou outra coisa mambembe, indefinida, à procura, o que agora escreve. Estou longe dos textos jornalísticos. Não os quero. Considerar-me escritor... acho que ainda tenho percurso para trilhar. Apenas abri uma nesga de incursão. Provavelmente tenha feito o meu ‘passe’, me autorizado - com a cumplicidade de leitores experimentais - a ser escritor a partir das minhas próprias experimentações e alquimias com as palavras. Senti o peso da responsabilidade de escrever e me obriguei a conversar mais aprofundadamente com outros autores. Temos um traço comum, a seriedade do ato de escrever. Há os que valorizam a história, outros a palavra ou a linguagem. Há os que se massageiam com as suas idéias e fantasias. Eu escolho a palavra, a linguagem. É ela a que me atém, nela e por ela me apóio. Escrevo muitas vezes meio que possuído por algumas entidades fantasiosas, místicas, espirituais, sei lá. Ao chegar ao final e ao reler o que escrevi, isso às vezes me espanta e eu não acredito ter sido o autor daquilo. Vou seguindo, trabalhando e convivendo com as minhas próprias intermitências. O “Um Quarto de Mil” foi assim. Outras criações minhas poderiam estar à frente desse livro. Entretanto, abandonei tudo o que já havia escrito para dedicar-me com exclusividade aos contos ficcionais breves de 250 palavras. A obra foi oferecida a diversas editoras, mas as propostas são indecentes ao autor. Então decidi fazer o lançamento independente da obra e me submeter, apenas, ao sistema estabelecido de comercialização. Criei uma página na internet e faço mala direta. Sem pressa. Quem se interessar vai lá: http://www.carloskarnas.com.br

7 - Trocamos... quantos emails, mesmo? Lembro que um dia tu me enviaste um número (eheheh). Para além das correções que me fazias, nos meus “atos falhos” ( é assim que chamas), falavas da preocupação com uma certa leveza, uma busca pela simplicidade de certos encontros, certos momentos. No teu texto, porém, encontramos  personagens que se dizem, que pesam nas suas escolhas. Qual a diferença entre escrever e viver?
Ambos pesam. Escrever e viver é existir. A existência é regida por sentimentos, desejos e imprevisibilidade. Também por atitudes. Nada é certo, nada é seguro, a não ser a morte, sem vida e sem textos. O tempo, fatos e atos nos impõem marcas indeléveis. Personalidades, histórias pessoais, vivências, experimentações, comportamentos, a genética e tantos outros ingredientes determinam nossos rumos. O inconsciente também. Vale tanto para o viver quanto para o ato de escrever. Mas, de todas as influências, o desejo talvez seja o mais relevante: o querer fazer algo que te marque e te estabeleça com dignidade. Acho que a vertente é por aí. Mas, enfim, talvez seja louvável o discernimento. Podemos impor nossos próprios pesos, mas não seria justo jogá-los, os demasiados pesados, para outras pessoas. Pelo menos de maneira inconsequente. Entretanto, há situações em que a realidade se impõe com tanta grandiosidade que não devemos ter atitudes falsas, cínicas. O ato de escrever é absolutamente solitário, único. O escritor se delicia com a prática, mas também sente a carga do ato. São os momentos, lampejos existenciais que nos impulsionam e nos determinam. Acho que isso acontece fortemente na escrita ficcional. Sempre digo que o conteúdo do meu livro é momento, instante ficcional. Parece ser, pode ser, é ou não é. Que cada um decida, que o leitor decida. A conotação é diferente para o que escreve biografia ou pratica a literatura reportagem, da história. Mas, continuo afirmando: na ficção se trabalha melhor a verdade.

8 - No nosso café, contou-me sobre a  troupe dos Karnas ( ehehehe). Estes filhos artistas! Poderia compartilhar conosco esta história?
Pois é, o estilo familiar acho que fomentou e definiu a trajetória dos filhos. Uma única filha parece seguir a vida normal, ao ser comerciante. Todos os demais enveredaram pela seara das artes e espetáculos. Um filho é ator, formado na EAD-SP, diretor teatral, também dançarino, faz preparação corporal de atores, faz cinema, é músico, compositor e tem a banda “Crika y Os de Solares”. Outro é ator de teatro e cinema. Os dois já se apresentaram em países da Europa e nos Estados Unidos. Uma filha perseguiu a mesma trajetória no teatro e cinema e hoje é professora de yoga. Por fim, o caçula, é artista dedicado à técnica do grafitti. Liberalidade, estilo e vivência familiar talvez tenham determinado o rumo de cada um. Tanto é que um deles, o adotivo – por querer ser adotado pela família –, chegou até nós pelo apoio e sustentação que dávamos aos demais filhos que se iniciavam na prática do teatro. Nossa casa sempre ficou de portas abertas ao meio artístico e cultural, do Brasil e do exterior. Significativos momentos culturais já aconteceram dentro da nossa casa.

9 - Manaus... Pescando peixe com uma antena?
Eheheh! Trata-se de uma charge feita por queridíssimo amigo meu. Engraçadíssima. Ao sair de Porto Alegre fui desenvolver um trabalho de reestruturação de uma rede de TV no Amazonas. Lá fiquei um ano. Esse meu amigo, para gozar da minha cara e das dificuldades que eu enfrentava, criou e me mandou uma charge. Eu era caracterizado como um ribeirinho manauara, vivendo numa palafita com antena parabólica e, sentado em atitude desconsolada, pescando peixe num rio, que poderia ser igarapé. Hilária a charge. Conservo-a até hoje. Sobre isso, refresquei a memória dele na última Feira do Livro de Porto Alegre. Não nos víamos há mais de 30 anos. Rimos felizes.

10 - Estivesse na feira do livro lançando “Um quarto de mil”. Como foste acolhido por estas bandas daqui?
Então, participar da Feira do Livro de Porto Alegre me foi emocionante. Há 30 anos, acho, que não palmilhava a feira. Fui assíduo visitante dela, como garimpeiro e comprador de livros. Este ano, com o lançamento do “Um Quarto de Mil”, alimentei a idéia de participar dela como autor. Pensei nisso até como ato de respeito, de oferta à minha cidade para nela lançar o meu livro num evento tão importante e magnífico. Pela metade do ano fiz contatos e comecei a trocar ideias com amigos escritores e jornalistas. Com a ajuda deles peregrinei todos os passos até a Câmara Rio-grandense do Livro aceitar a minha participação e agendar sessão de autógrafo. Na verdade foi esta a minha primeira experiência de autografar numa feira como a de Porto Alegre. Surpreendi-me, na noite de autógrafo, com a quantidade de amigos, companheiros e pessoas que compareceram para me prestigiar e me abraçar. Foi também um valioso e grandioso momento de matar a saudades de pessoas que não via há décadas. Muitas delas tive dificuldades de lembrar-me dos nomes. Defrontei-me com fisionomias que mudaram. Ao meu redor estabeleceu-se uma pequena confraria de jornalistas, escritores, intelectuais, políticos, parentes e desconhecidos que me propiciaram alegrias e bem-estar. Vivenciei uma tontice emocionada. A mídia me deu atenção inusitada e me ajudou muito na divulgação. Tudo me compensou e me deixou pensativo. Aquele momento alimentou ainda mais a minha vontade de voltar às minhas origens. É aí que eu vivo, sou alegre e feliz, aí na minha Passárgada cheia de energia, beleza, prazer e emoção.
11 - Entre vários emails um não me sai da cabeça ( eheheheh).  A receita de sopa de capeletti e aquele molho com tomates secos para o pãozinho torrado... Ah! Também aquela estória da maçã em fatias com nata, que eu duvidei que era bom, provei e... ( eheheheh). Desde lá passei a respeitar a mesa e me interessei a fazer coisas diferentes para reunir as pessoas. Pergunto: o que tem em comum uma boa mesa e um bom texto?
O manjar, minha querida, o manjar. O deleite para o espírito. Por viver só, num sítio, afastado da cidade e no meio da roça, desenvolvi gostos e prazeres particulares. Permito-me e proporciono-me manjares solitários, algumas vezes frugais, mas requintados. Um bom texto não proporciona justamente isso? Um alimento? Uma iguaria apetitosa e que enleve o espírito? Ah, o prazer! A linguagem! (Bah! Não sabia que as minhas receitinhas fizeram sucesso contigo! Uau!)

12 - Também a idéia sobre um saber... Lembro que decifraste algumas coisinhas como, por exemplo, minha paixão pela dança. “Adios Nonino”... Piazzola. Podes falar um pouco sobre tua relação com a música?
Música me é vital e talvez ela possa ser mais completa que a própria literatura, ao amalgamar palavras e melodias transformando-as em linguagem harmônica universal. Ouço música, escrevo ouvindo música. Aprecio a dança, bailados, pares dançando. Adoro o insinuante. Sou frustrado por não saber dançar e por não ter tido, ainda, a iniciativa de aprender. Mas é o tango com os bandoneóns, tocado e dançado, que me emociona mais. Para mim não existe aquela preferência por gênero musical. A música me é um afago sentimental e emocional. Se ela me arrepiar, fizer palpitar o meu coração e lacrimejar os olhos estará eleita. E ao elegê-la, desfruto-a como amante, com todas as práticas permitidas e não permitidas, pelo menos no pensamento e no imaginário. Por vezes os meus textos nascem a partir da música, desse lampejo fulgoroso para percorrer trilhas inimagináveis. Consciente e inconscientemente.

13 - No almoço de novembro combinamos:  comida leve e conversa mais leve ainda. Saladinha, tempo sem fim... Algumas coisas do Carlos eu desconhecia. Neste dia falavas sobre a ineficiência do direito: Adriana, para o amor não há lei. Há normas para separação de bens, casamento, união estável... Para o amor enquanto sentimento não há. Ficamos pensativos sobre: será que o amor é fora da lei? ( ehehehheeh). Pois é meu amigo... o que achas disto?
Putz! Será que cheguei mesmo a falar tanto assim? Pois é, a palavra ‘amor’ está tão batida que pode estar ficando banalizada para cair no desprezo ou desinteresse. Ando pensando em criar outra palavra, um novo termo com novo significado para a que usualmente está estabelecida. Sabemos tudo do amor? O que é o amor? O que é amar? Como se ama? E será que o ato de amar precisa da palavra? Pensando bem, o amor é fora da lei, porque o amor se estabelece entre dois ou mais seres onde prevalecem cumplicidades. As cumplicidades são particularidades de interesses comuns e cada ser é o seu próprio universo que não dita regras necessárias. Diz-se das formas de amar, maneiras de amar, atitudes amorosas, demandas de amor. Há regras nisso? Entretanto, os desfazimentos, mesmo os do amor, acabam condicionando deveres e obrigações, especialmente perante a lei e mesmo nos acordos particulares. É mais difícil e doloroso romper. Não há temores para se amar, pois o que virá sempre será bom. Romper, terminar, acabar sempre dão medo, mesmo quando necessários. O momento seguinte é o do desconhecido. Por isso ditam-se regras e lei. O assunto é infindável e sempre permitirá o idílio e o desprezo, o doce e o amargo, a leveza e o peso da nossa existência. Tudo para ser aproveitado e discorrido nas linguagens todas, pela palavra na literatura.

14 - Descrevias uma cena em que a mulher dançava de meia calça e pés no chão. Falavas disto tão intimamente que era como se descrevesse uma noite comum. Teu texto passa exatamente isto, uma procura pela cumplicidade ou, em alguns momentos, demarcas a falta disto. É uma escrita que mapeia um tempo. Talvez pelo instante das 250 palavras, talvez porque deixe claro a ficção restaurando as vivências de um homem de sua época. Vais me corrigir (eheheheh)?
Laconicamente: não te corrijo. A leitura é tua.

15 - Diz-me seguidamente: sozinho, em casa, eu danço bem! Falas também do quanto achas bonito o tango, naquilo que expressa de cumplicidade. Viste bem qual o título desta entrevista, hein? E o tango? Queres explicar?
Aqui, sim, devo te corrigir: eu não danço bem, pelo contrário, muito mal. Ouso dançar. Sozinho. Faço isso, ocasionalmente. Na verdade, sou parceiro e dançarino com as minhas emoções, sentimentos e fantasias. Pratico, eventualmente, a dança dessa forma e, por incrível que pareça, deslizo, rodopio e persigo ritmos. Aí mesmo, em Porto Alegre, uma amiga me convidou e insistiu para irmos a uma casa de dança. Suei frio. Era noite de tango. Encolhi-me, ela voltou a insistir. Fomos. Dançamos outros ritmos. Envergonhei-me. Ela foi uma dama, de fineza indescritível. Conduziu-me, pacientemente, meus passos e corpo ao ritmo. Depois ela me fez um comentário: a dança sempre deve ser praticada com parceiro ou parceira. O que se acostuma a dançar só perderá a desenvoltura ao dançar acompanhado. Cheguei a falar isso para ti? Não lembro. Sei que te falei em tango. O tango aparece nos meus textos como elemento existencial, apaixonante, deslumbrante, aliciador, pecaminoso, amante, envolvente, forte, de aceitação e submissão, cúmplice, parceiro e sexual. – Em “Submissos”: Imaginou qualquer similaridade ao tango e à paixão portenha. Então alguém surgiu como companhia experimental e ela pôs em pratica aqueles caprichos mais alucinados: os que constrangidos senhores de meia idade já não conseguiriam aprimorar por iniciativa própria. Por isso ela naufragou no seu instinto e liberou o licencioso que dela precisava ebulir.” Em “Cela”: “Ele já estava miserável, depois de presentear as suas riquezas amorosas e destinar um patrimônio para aquela mulher que o seduziu numa casa noturna em que os dois dançavam tangos e milongas.” Em “Despedida”: “Exalou seus odores generosos como se estivesse no cio. Excitada fez o convite para dançar ao som de uma musica derradeira. Um tango. Nessa arte, dor e paixão complementam o amor. Os corpos dos bailarinos se desnudam e realçam loucos desejos em passos decididos e elegantes. Na parada brusca a mulher afrouxa o sexo.”. Há também o conto “Restos”. Gosto muito deste –. Enfim, tango para mim é um universo. Há um filme, se não me engano de Almodóvar, intitulado Tango. Lindíssimo, uma ópera completa. Eu recomendo a todos para o assistirem. Comentei isso contigo, não é verdade? Caminhávamos pela Rua da Praia. Aproximava a nossa despedida. Passamos diante de uma porta e lá estava a placa: Aulas de Tango. Apontei para aquela placa e chamei a tua atenção. Sorriste. Percebi o leve balançar do teu vestido verde, o teu frescor. Então me disseste e propuseste-me: “Vou me matricular em aulas de tango. E iremos dançar tango uma noite em Buenos Aires”. Preciso ir mais adiante?

16 - No retorno de nosso almoço falavas de leveza. O que é leveza para ti?
É o que temos aqui. Felicidade.

17 - Gostaria de dizer mais alguma coisa?
Aqui no teu Indecentes Palavras, as palavras indecentes ainda não apareceram. A leveza, a arte, a magia das palavras, o sentimento, a emoção e o respeito determinam a vertigem. Há linguagem e arte estabelecidas. É poesia a que comanda. Tentei me conter nesse viés e nesse tecido. Às vezes ouso ser obsceno, não consigo. Conhecemo-nos este ano por iniciativa tua, ao me enviares e-mail a partir da leitura que fizeste do meu livro “Um Quarto de Mil”. Construímos uma correspondência particular e não desprezamos as oportunidades de nos encontrarmos. A palavra, a literatura e algumas confidências nos mantém. Apreciamos-nos e navegamos nesse córrego nem sempre manso. Há trechos turbulentos. Já experimentamos alguns exercícios juntos, como o de tentarmos escrever o “Contos do Mar Sem Fim” - algo que surgiu assim do nada, das nossas palavras trocadas, como um repente. Ele está suspenso, inerte depois de um corte. Sei do ar que precisas para respirar, para viver, para amar. Sei de algumas batalhas tuas, do teu permanente esforço de seguir, de ir, alcançar... o quê mesmo? Dou-te força, te desejo sucesso, te quero bem. Aprecio o que escreves, o poético e singelo que há em ti, na tua literatura, na tua linguagem. Instigas. Aprendo contigo. E penso em Aldebarán. E será que o teu leitor, o que está lendo agora sabe, conhece Aldebarán? Aldebarán poderá ser a nossa próxima e derradeira estação.

Carlos... sinto-me honrada por estares aqui. Sou grata pelo nosso encontro na vida, na rua (o blogue é estar na rua), nesta busca em comum pela leveza das coisas boas, esta brisa pequena que nos leva a pensar em Aldebarán, a pensar em seguir pelo MAR SEM FIM.
Beijo com todas as letras
Adriana Bandeira

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